Boo! Sejam muito bem vindos ao Conchas, sua taberna imaginária que abre as portas na sua caixa de e-mail. Feliz Halloween com uma edição especialmente enfeitiçada.
Uma mulher pode até enlouquecer. É seu direito divino, herança do caos tirânico do mundo moldado ao bel-prazer dos homens.
Uma mulher pode envelhecer, surtar, sucumbir, parir e se curar de si.
Mas ela não o fará sozinha.
Ainda que acredite no contrário, que a tenham feito crer desde pequena, desde menina, uma mulher nunca está só.Nunca é só.
Somos. Eu sou porque nós somos. Sou também, a ver: Cleide, Rosita, Elvira, Iracema. Quem mais veio antes?
Eu, Julia e Gabriela moramos na mesma casa, cada uma de uma vez.
Somos elos. Quem mais vem depois? Mistério.
Estamos emaranhadas pelas duas fitas que abrigam cromossomos.
XX. Dois beijos, um de cada lado.
Damos a outra face, a outra polpa. Do rosto? Também.
Somos gotículas que, conscientes ou não, corremos todavida em busca da integração com o mar, o grande líquido amniótico de Gaya.
Eu sou só mais uma, e isso em si é muita coisa. Fractal de todas as mulheres do mundo. Inclusive da mulher do fim do mundo. Salve, Elza. Tua força de ser nos liberta. Salve Rita, protetora de todas as ovelhas ditas negras. Salve a força escura, oculta e úmida que existe em cada ventre.
E, porquê essa potência infinita de criação - e êxtase - nos coloca numa posição de poder inegável, muito nos foi negado. Usurpado. Proibido. Desvirtuado. Inclusive, os nomes. Primeira e principalmente, os nomes.
Ou vocês acham que foi por acaso que reduziram as mulheres sábias, as erveiras talentosas, as cozinheiras alquímicas, as médicas e curandeiras e parteiras e artistas e dançarinas e músicas, e. Meninas, mulheres, anciãs.
Todas, todas, em algum momento e em todo lugar: louca, má, puta. Bruxa.
E tem mais: nos pintaram de feia, nariguda e fedida, cheia de verrugas, corcunda, rancorosa,vingativa, esquisita, faminta por criancinhas, esquentando eternamente um caldeirão. Em uma cabana puída. No meio da floresta. Sozinha.
Ora ora, mas quem conta - e escreve - tais histórias, usa saia, ou usa calças? Pois é.
Bruxa. Bruja. Stregi. Sorcière. Witch. Ajẹ. Majo.
Em toda cultura, onde houve aldeia, fogueira, mulher. Um nome. Esse.
Então, por tanto, por todas e por todo esse tempo, eu faço um convite. Pra você que me lê. Não me interessa o que tem no meio das pernas, mas o que tem no meio do peito. Sente. Coloca a mão. Olha para o espelho e perceba o que acontece quando pronuncia esta única palavra: bruxa.
Dá uma coisa.
Ainda mais, agora. Nesse século, nesse momento onde o conflito e a linguagem dos homens - que é a guerra - paira.
O que podemos criar com isso?
O que pode uma bruja?
E várias?
E a totalidade delas?
Podemos. E muito.
A bruxa está solta e ela pode tudo. Inclusive, e, porque não, cozinhar.
Depois da palavra - que é feitiço usado até por Deus para conjurar o mundo - desconfio que poucas atividades do mundo moderno evocam tanto a magia como cozinhar. Sério.
Quem cozinha é simultaneamente observador e agente das transformações. Muda-se a cor, a textura e o sabor, combinam-se aromas improváveis, uma coisa que era frágil ( como um ovo) endurece na água escaldante, ao passo de que um rígido tubérculo ( como a mandioca) amolece.
Um caldeirão é lugar de tanta mistura, e é, pra mim, do reino das águas que tudo absorvem, recombinam e regeneram. E, porque foi tanto evocado junto a tal daquela bruxa maléfica, deve ter pegado rastro na imaginação do povo. Explico. Eu vinha fermentando as ideias do que seria um texto bom o suficiente para o dia das bruxas.
Ano passado, o texto dessa época saiu num suspiro aliviado, no espanto, na madrugada fatídica do segundo turno. Bom. Viva os ciclos, que alegria estar (finalmente!) nas boas graças de Saturno, hare hare. Mas e agora? O que mudou neste um ano? No Brasil, um monte. Mas em mim, muito mais.
Eu vinha buscando entender o que seria, na minha experiência, comida de bruxa. E, embora eu me sinta cada dia mais à vontade para me autodeclarar ( olho no espelho, digo bruxa em voz alta e, na maioria das vezes, explodo em gargalhadas), não tinha clareza sobre o que seria essa tal culinária bruxesca.
Pois fui fazer o que sempre faço: consultar livros e pessoas. Nos primeiros, bom, muita coisa doida, não vou mentir. Magias para o amor. Muito mel, cravo, canela. É bom, mas, se me for permitido um conselho: evitem o uso tópico para fins afrodisíacos.
Uma coisa que gostei bastante: muitas cozinheiras declaradamente bruxas - ou feiticeiras que gostam de se aventurar na cozinha e escrever sobre isso - são, também, vegetarianas, e extraem poder e inspiração de milhares de ingredientes, nenhum deles de origem animal.
Quando me fartei dos livros, me voltei para my fellow humans. Olha, isso de gostar de gente é bom, mas cansa.
Assunto aqui, ali, nos grupinhos, nas caixinhas. E algumas unanimidades, sendo a principal delas a….sopa.
Sim. A famigerada, sempre em franco ataque pelos glutões que recusam sopa como jantar ( pode ser até café da manhã, mas não sei se o ocidente está pronto pra esse papo).
Confesso que fiquei meio assim.
Talvez minhas expectativas - como de praxe - eram de técnicas mirabolantes, ingredientes raros e caros, alguma coisa extraordinária. Mas se é no ordinário, nos detalhes e nas miudezas que tanta mágica acontece.
Sopa, que pode ser no caldeirão, que exige pouco, que muda completamente ao ser submetida à tríade de fogo- tempo-atenção.
Sopa, que oferecemos por amor, por frio, por caridade. A sopa de pedra, a sopa de sobras, a sopa rala que mal vai dar para dois.
A sopa, que pode ser rosa para as russas, fria para as espanholas e translúcida para as japonesas. Que pode ser o fortificante da mulher parida, o acalanto das criancinhas acamadas e dos idosos indispostos.
E, veja só, a sopa é magia porque, se falamos de uma cozinha caseira e em tudo doméstica e improvisada, sua dose é sempre única.
Impossível de repetir. Não se sorve a mesma sopa duas vezes. E por muitos motivos e não apenas um.
Vai ver, a cozinheira está naqueles dias. Ou o gosto muda porque a chuva não veio e as verduras concentram todos os sabores ou porque o fogo estava alto demais - erro de aprendizes e de amantes - ou muito fraco.
Sejam os itens caros ou baratos, fartos ou restritos, seja o dia quente, frio, de ventos uivantes. A sopa está disponível como uma alquimia boa, uma conjuração de sabores, um veículo de cura. Simples, humilde, cálida.
A sopa é o sonho de um peregrino que subiu e desceu montanhas a fim de encontrar sua amada - talvez uma boa mulher disfarçada - a esperar com a cumbuca fumegante, o pão fresco e o sorriso no canto do rosto, como quem diz, baixinho mas com gosto: bruxa.
Que curioso que mais pessoas tenham dito sopa... deve ser a estética do caldeirão rsrs
Eu li duas vezes. E voltarei. Essa Taberna de hoje deu uma coisa.