Você chega para um almoço tardio no Conchas, e encontra um pessoal no quintal, esperando em uma fila que não é para comer. Esperam por uma mulher. Essa mulher, uma senhora, sibila de olhos semicerrados, chacoalha pedaços de manjericão e guiné na mão, um crucifixo de madeira perfumada circunda o pulso. Nesta hora rasa - domingo, de tarde - circula adultos e crianças, boceja, espirra. Sorri.
Ela não se explica; só reza e acende vela. Benze. Diz que não precisa nem das ervas nem da água de cachoeira, só do coração aberto e do bem querer nas palavras, na intenção. Mas que é bom ter uma cuia, um oratório, um verde.
Vive com um raminho de arruda por detrás da orelha esquerda, como minha avó Rosita, como meu avô Altino, que carregavam com eles a Bahia e Minas Gerais, dois estados unidos por um deserto, entrecortados por misteriosas crenças, beatices, santos que trocam de nome. Rituais.
Por sina ou destino, a benzedeira segue seu caminho. A intimidade com as plantas não parece ficar só no campo espiritual, mas transbordar para a caçarola. Por isso até está aqui; chamei dona Dadá para me ajudar em um almoço, para refogar frango caipira, para dourar quiabos, fazer molho fresco de pimentas, quem sabe me ajudar a fazer um angu sem caroço.
Mas deu no que deu, no que sempre dá; tem gente que vem com missão assim, e, por onde passa, sai desatando nós, abrindo caminhos, bendizendo.
Impossível precisar em que momento cozinhar e benzer se tornaram uma coisa só, um ritual conjunto, um banquete de orações; mas é o que é.
Pode ter a ver com os banhos, as garrafadas, os xaropes caseiros que ela faz e consome desde menina. Nem tudo que se banha se pode beber, mas quase tudo que se bebe se pode banhar.
Parece simples, mas requer um pajear de vida toda, olhar atento, ouvido mole, coração enorme, braços firmes. Acolhimento.
Ela conta, muito humilde, que benzer é dizer coisas boas, desejar, querer o bem. De outra pessoa. É entoar repetidas vezes palavras capazes de levantar a espinha caída, sanar dores remotas, desfazer quebranto, fortalecer aura, tirar mau olhado, remover pesares antigos. E sempre de dia, enquanto houver Sol.
Aprendeu com a mãe, que aprendeu com a avó, que aprendeu com a bisavó, numa matrioska mística de saberes.
Não cobra. O servir é de graça, e, diz ela, a recompensa é a própria saúde, a disposição, as palavras que brotam na hora certa.
Respeito tanto esse saber; celebro o sincretismo único que está tanto nos terreiros quanto nas cozinhas, nos interiores desse país, que agora escuto chamarem de Brasil profundo.
Imagina não ter isso, não enxergar arrudas e espadas nas portas das casas, não saber o que é a selvageria com que cresce o ora-pro-nóbis que se enrosca nos muros e dá flor quando menos se espera. Coisas de viver no Brasil, de ser daqui, de se embrenhar em suas origens.
Confio nos mistérios da terra onde nasci. Tenho mais fé hoje, aos 33, do que jamais tive. Agradeço dona Dadá, rezo junto, e desejo que todos os frequentadores desse espaço tenho saúde, sorte e sucesso. Amém.