Sejam todas e todos muito bem vindos ao Conchas, esse restaurante literário, delírio compartilhado, esse ponto de encontro, essa mensagem na garrafa que chega toda semana na sua caixa de entrada.
Como vocês estão? Eu começo:
“Tenho acordado cedo e me sinto ótima!”
Ainda não gastei a alegria, ainda não desbotou o alívio. Por mais que tente, chuva não desbota flor.
Nem aquelas vermelhas dos Flamboyants que adornam todas as quadras acima e abaixo.Essa semana. Uma semana. Quanto tempo o tempo tem? Quanto cabe em sete dias corridos depois de quatro anos sofridos?
Cabe a vida-morte-vida. Foram dias de voltar pra casa. Visitar a UnB, minha Alma Mater.Acender velas para os que partiram mas seguem vivos, chama alta aqui dentro. Recomeçar na escrita, mais uma vez. Levar meu carro no mecânico, meu violão no luthier, meu corpo inteiro para a massagem, minha mente agitada para a terapia, minha amiga genial para almoçar. Foi tempo de cozinhar para meus anfitriões baianos, para minha prima, para mim. Dias de abraçar apertado, abrir caminhos, recalcular rotas. Quanta vida cabe, viva!
Alguns assuntos, não adianta, vou sempre falar. Comida. Amor. Tempo. E porque tenho sempre falado, vez em quando, na máquina de escrever - que também é uma máquina do tempo - surgem as palavras exatas, vindas de outras primaveras, quem diria.
Hoje deixo um texto meu de 2017, que dá nome pra edição. Espero que vocês gostem. Se cuidem, cuidem dos seus, façam pão e, se der, me manda uma notícia boa. Bom domingo!
Tempo de cozimento
Mais sutil do que o sal e bem mais poderoso. Mais envolvente do que o caldo do mar, que delimita continentes e nem nos damos conta. Não liguem para azeites trufados, maçaricação infinita, sous vide, farofa de castanha de baru e pequi. Esqueça. O último grande luxo nas cozinhas (e nas vidas) é o tempo.
Quem já cozinhou uma paixãozinha pequena que seja sabe que, tal como sobremesa, esperar é necessário.
Mas esperar, em fogo brando, não deveria ser um fardo, nem modus operandi que assegure garantia, qualidade ou sabor. O tempo dá a receita e depois muda os ingredientes no meio do caminho. O tempo é, em si, ingrediente. Quem cultivou, aos trancos e barrancos, distâncias e relacionamentos de décadas sabe: tempo é ingrediente ácido que tempera e conserva, azeda e corrói. Quem corajosamente teve filhos na flor da idade já entendeu: passa muito rápido e a pessoa fica zonza, bêbada do tempo que passou quase imperceptível.
Envelhecer com valentia
Penso com frequência numa grande frase atribuída ( erroneamente ) ao guerrilheiro latino-americano mais querido, Che Guevara ( 1928–1967). “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. Desconfio que este seja o grande desafio para certos produtos e certamente o é para todas as pessoas.
Para se tornar um grande vinho de guarda, a garrafa precisa guardar o resultado de uvas valentes, robustas. Dispostas a esperar no escuro e frio por anos até uma comemoração, um noivado, uma formatura, bodas.
O café que envelhece bem, por exemplo, origina-se de grãos que caso fossem consumidos frescos seriam apenas razoáveis. O tempo doma acidez, asperezas e adstringências (aguardo os mesmos resultados para mim, um dia).
De cada dia
Tenho feito pão. Faz anos que espio essa possibilidade, quando adolescente fazia uns pãezinhos mixurucas e mal assados, na base dos fermentos que encontrava no supermercado.
Em 2014 escrevi uma matéria sobre padarias de fermentação natural que começavam a deslanchar em Brasília e entrevistei o Luiz Américo Camargo, que havia lançado o ótimo Pão Nosso, livro que explica tudo para quem deseja desenvolver o próprio levain e assar pães em casa.
No ano seguinte me mudei de Brasília para São Paulo, fiquei orfã da La Panière, Varanda e La Boulangerie e tentei criar algumas vezes e manter meu levain, sem muito sucesso.
Pode ter sido o nome; no auge de um dos ( muitos) escândalos políticos nacionais, nomeei meu tomagoshi de farinha de Levaindoviski. Hoje constato que se você deseja que seu fermento natural cresça forte, é melhor dar nome de mulher.
Passei o ano de 2016 consumindo pães de pequenos produtores da capital paulista e lamentando o queda de qualidade que veio com a expansão de uma das minhas então preferidas padarias da cidade. No começo de 2017, participei de uma mini oficina na casa de uma pessoa que sempre admirei no Instagram. Fui meio na cara(de pau)e coragem, para aprender vendo de perto e para levar uma isca (porção de um fermento já consolidado e borbulhante)de fermento para casa.
Desde então, tenho assado fornadas cada vez mais satisfatórias. Já passei para frente iscas do levain que andam dando vida à novos pães em novas casas. Vejo fotos de conhecidos que também participaram desses encontros de panificação amadora ( no melhor sentido dessa palavra) e penso nos pães primos dos meus. Agora, minha ideia é convidar um pequeno grupo de pessoas para minha casa, ensinar o pouco que sei, encorajar no melhor estilo “se eu consigo, você também consegue”.
É claro que esse crescente interesse pela prática de fermentação natural pode muito bem ser entendida apenas como ( mais uma) modinha hipster. Entendo mas discordo. Li em algum canto enfarinhado que esse movimento, que inclui kombucha, kimchi, chucrute e tantas outras coisas possui um quê de contracultura, do movimento punk de faça você mesmo, aprenda errando e não se desculpe por nada. Simpatizo mais com essa ideia e espero ir crescendo em experiência e esmero na minha pequeníssima padaria doméstica.
Demorou esse anos todos para que eu entrasse em contato, foi preciso algumas tantas leituras , tive que ver com as mãos , testar, errar, me afastar um pouco para assar meus pães.
Tenho certeza de que existem muitos aprendizados ocultos, desses que a gente só entende sentindo na ponta dos dedos, observando sinais, para que eu possa dizer que de fato entendo ( um pouco)o processo. Algumas coisas não vou entender nunca, mas com o tempo adquiro aquela tranquilidade dos antigos que constatavam empiricamente o que acontecia nas fermentações. As receitas para fazer um bom pão falam de 4 ingredientes básicos: farinha, fermento, água e sal. Eu adicionaria o tempo — e com ele toda a carga de paciência — como o quinto elemento.
Tempo é um ingrediente poderoso demais na cozinha e na vida. Mas não se engane nem tente controlar tudo. Leite vigiado, sabemos, não ferve. Pão estressado não faz bolha. E vida cercada por ansiedades e anseios não vinga nem segue. Afinal, como pontuou um escritor grego que não conseguiu morrer nunca: um pedaço de pão comido em paz é melhor do que um banquete comido com ansiedade.
Que texto cheiroso e fofinho como pão quentinho.