Aposto que você leu o título e, se for mais versado nessa coisa de comida, abriu esta correspondência cheio de palpites.
Peço desculpas pela estratégia de alarde. Mas fico feliz de ter sua atenção.
Sabe como é; algum tempo sem abrir as portas do Conchas, é preciso que se rabisque em letras homéricas ( quem dera, pintadas por esta moça) um especial do dia para cativar a clientela que deve estar ressabiada com a inconstância recente deste estabelecimento.
E não é como se não tivessem tantos outros cantos para frequentar, tanta coisa para ler e ver e saber e opinar que a pessoa pode arripunar ao menor sinal de anzol, paywall, sazón.
Pois bem.
Se você é sabido dessas coisas, pode ser que tenha começado com as suposições sobre qual seria esse tal ingrediente.
Trufas frescas rastreadas por porcos ruivos treinados?
Pistilos de flor de açafrão que crescem numa encosta com vista para o Mar Mediterrâneo? Filés de carne de Waygu, um boi que dorme ouvindo não cantigas de ninar, mas música clássica, e que recebe vigorosas massagens ao longo de sua (curta) vida?
Baunilha da ilha de Madagascar, colhidas ao nascer do Sol por nativos de dedos diminutos e embarcada de navio, avião, trem e caminhão até você?
Ou, bem literalmente, folhas de ouro comestíveis ( como diz um amigo, tudo é comestível, pelo menos uma única vez) capazes de enfeitar sushis, coquetéis, bifes do tal boi japonês, bolos e o que mais parecer razoável.
Tudo isso é caro, mas pode estar em um menu a apenas um QR code ( que ódio) de distância. A apenas uma taxa de entrega, a apenas um Pix de você.
O ingrediente a que me refiro, no entanto, é cada vez mais difícil de encontrar. Não pode ser solicitado com alguns toques de botão.
Quer dizer, até pode, mas sem nenhuma, absolutamente nenhuma garantia de entrega. É mais, digamos, clandestina. Você nem se dá conta, já mastigou um bocado e, quando percebe, pimba! Está ali, é aquele gosto, ou cheiro, ou textura, caramba, como você pode se esquecer?
O gosto deste ingrediente em si é pessoal e, suspeito, intransferível.
Pode ser o queimadinho do leite com canela preparado pela tia da cantina, um alento depois do almoço. Ou o aroma indefectível do cominho no feijão, que, por anos, ficou na ponta dos dedos da avó e perfumou cafunés sonolentos em tardes morosas.
Mas dá para fazer em casa, podem perguntar. Não consigo passar a receita, acho cada vez mais complicado as etapas de preparo.
Teria que começar desfazendo mágoas, desativando notificações, talvez reconstruindo casinhas de chão de caco, há muito perdidas para prédios espelhados. Precisaria garantir a todas as pessoas trabalho, moradia, proteção, e a certeza da próxima refeição.
Seria necessário, ainda, sentar algumas dúzias de líderes de nações e, como irmãos briguentos, abraçá-los na marra, num canto da sala, sob a orientação de só deixar sair quando decidirem não mais brigar, invadir, saquear e guerrear. Diplomacia, sim, na base da quinta série.
E ainda tem as mães. Pobrecitas. Não faço ideia de como assegurar ao menos uma cumbuca quente, salpicada com o ingrediente mais caro do mundo, para as mamães deste mundo. É que precisaria averiguar tanta coisa, a ver: a criança comeu, está rechonchudo, limpinho e serelepe, dormindo em berço explêndido? A casa está razoavelmente limpa, ela se banhou e penteou, trocou de roupa? Talvez aí consiga provar do manjar da vez. Quiça.
Não quero desanimar ninguém, longe de mim criar mais elitismos à mesa. Parece que é muita preparação para comer bem, para adicionar tal ingrediente. E é, não tenho como ludibriar. Mas, existem sempre momentos de pura exceção, de alinhamento de planetas, de cantoria dos anjos da guarda, de pura serendipidade.
E, enquanto escrevo, eu a enxergo nitidamente, esta mulher, prestes a degustar o melhor ingrediente do mundo. E ela nem sabe. Saiu de casa ainda estava escuro, sacolejou na condução, repassou mentalmente tudo que precisava fazer naquele dia, naquela semana, no mês, no ano. Seria bom ir ao salão, fazer as unhas, retocar a raíz. Quem sabe no sábado, quem sabe se sobra um dinheirinho, tempo, disposição.
Chegou a tempo de bater o relógio do ponto, mas encontrou a máquina desligada. Tudo desconectado. Um problema de luz? A rede toda desse jeito, parece que foi uma pane geral. Sem previsão de volta. O gerente coça a cuca de cabelos ralos, não há o que fazer, dispensa os funcionários.
Nossa comensal, quero chamá-la de Maria, não pensa duas vezes, dá meia volta e chega no instante preciso para pegar o ônibus de volta. Manda mensagem para Silene, a dona do salão, que aceita pagamento em vale refeição, em transporte, em tudo."Pode vir".
Se dá conta de que é sexta-feira e que tem roda de samba e que é fim de semana do pai pegar os meninos direto na escola.
Consegue um assento vago na janela. Sente um ventinho fresco, que dia bonito, a fome que bate e ela não tem dúvidas. Desenrola o papel alumínio, e ali, na primeira mordida no sanduíche de pão francês e ovo mexido, entremeado entre clara e gema, ali, o ingrediente : uma paz terrível, indefectível e límpida confere um sabor inigualável.
Antes de abrir o link pensei “baunilha!”; depois de lido o primeiro parágrafo achei “açafrão!”, pra logo depois pensar “ah…é o tempo!”. E no fim é realmente algo que se encontra em momentos simples, mas cada vez menos aproveitados; tantas são as preocupações, os problemas, a correria, como naquela canção de Paulinho da Viola. Maravilha de texto!
Uau! Que texto maravilhoso