Volta e meia eu me encontro congestionada. O peito carregado com as palavras que não ando espalhando, as prateleiras cheias com os grãos que não hidrato, que não permito a cortesia de virarem brotos, as sementes recolhidas.
Não tem xarope que expectore escritos; quiça poemas, rimas simples, um coração-bobo-coração-bola-coração-balão-coração-são-joão. Cantar ajuda. Dançar embala. Trabalhar distrai, embora canse.
Mas o remédio mesmo para falta de escrita é escrever, então, aqui estou. Estamos. Seja muito bem vinda a este delírio particular compartilhado que é o Conchas, um restaurante imaginário no limite da razão.
No final de junho, entre as bandeirinhas e fogueiras e milho assado e quentão, a Adélia Prado, do alto dos seus 88 anos, foi laureada ( palavra que divide a mesma origem de louro, a folha perfumada, que, trançada em coroas, ornava as cabecinhas romanas há tantos séculos) com o prêmio Camões de Portugal e o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.
Recebi as notícias com uma alegria pura, com gosto de queijo e goiabada, de café passado na hora. Primeiro porque gosto muito de Adélia, que escreveu um dos meus poemas preferidos em língua portuguesa: Casamento.
Fiquei contente por se tratar de uma mulher, sagitariana e mineira, que, antes de publicar qualquer coisa que seja, viveu uma vida. Exerceu o magistério, ocupando-se em sala de aula por mais de duas décadas. Sentiu cedo o sopro do luto pela morte da mãe, talvez o motivo maior de seus primeiros versos. Casou com bancário, gerou e pariu cinco filhos. Cuidou de uma casa e de toda uma estrutura, o que não é, veja bem, pouca coisa.
Quando dona Virgínia escreve que uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção ela não mente, mas omite que absolutamente tudo e todos que estiverem embaixo deste teto ocuparão o juízo desta mulher. O pensamento enroscado na eterna lista de afazeres, a falta de sono, as preocupações, o eterno e infindável dilema: o que vai ter para o jantar? Nina Horta dizia que cozinheira, mesmo, era aquela capaz de responder, dia após dia, essa mesmíssima pergunta.
Até para sopa de pedra, é preciso ter pedra. É preciso uma força estranha para, depois de trabalhar, limpar, cozinhar, acudir e zelar, ainda ter espírito para lançar-se às palavras, sem nenhuma garantia. Imagino que para Adélia, não foi diferente.
Não à toa, seu primeiro livro, Bagagem, foi publicado quando ela já vislumbrava 40 primaveras. Após enviar o manuscrito de seus poemas para o escritor Affonso Romano de Sant'Anna, ela recebeu o incentivo de um outro mineiro, que prontamente a indicou para uma editora. Era Carlos Drummond de Andrade, que reconheceu naqueles versos a voz límpida como os riachos do interior onde vive e escreve Adélia.
Tenho para mim que a Divinópolis dela carrega um bocado das profundezas do Brasil, suas cadeiras de plástico espaguete debruçadas para a rua, o farfalhar de pombos na praça em frente a igreja, o sino, o mercado, o povo e os quintais do povo, cheios de boldo, hortelã, ora-pro-nóbis, cidreira e babosa. Faz muito sentido que, em Adélia, conseguimos ouvir no verso puro o silêncio sagrado entre o fim do almoço e o começo da missa de domingo, entrecortado pelas tiras de laranjas sendo descascadas.
É uma proeza dela resgatar o que de mais sincero existe no cotidiano, e isso, claro, passa pelo retrato da comida. Aquela, de todo dia, ou o pão nosso do Senhor que para a poetisa, é também o dom da arte, o fazer da obra.
São os peixes, que o marido pesca e que ela ajuda a descamar, retalhar, salgar. É a cozinha apartada do resto da casa, são os pequenos vislumbres de feijão sendo catado, as frutas colhidas no pé, uma essência de uma vida que se desenrola sem o atropelo do agora.
É um mérito não ter desistido da escrita, ter se aventurado em tantas frentes — poesia, prosa, teatro — e ter emergido de períodos de bloqueio literário e depressão e sustentado o sonho
Quem se dedica a ler e, em algum momento, escrever sobre escritores têm um jogo preferido. Primeiro, você precisa organizar um banquete imaginário e, em seguida, sonhar com a lista de convidados perfeita.
Vou além, e me ocupo em vislumbrar o que eu serviria para cada um. Para Adélia, talvez eu me arriscasse num frango refogado com açafrão. Umas broas de fubá, salgadas, temperadas com pedacinhos torrados de toucinho e salsinha picada. Tremeria nas bases, é verdade, pois minha mineirice é requentada, somente por parte de pai, mas cozinharia de bom grado pela chance de servi-la.
Mas se, por qualquer acaso estivesse ela em Brasília, a levaria para um café da manhã na Adélia, padaria homônima. A poetisa serviu de inspiração para os sócios, Luiz Filipe e Renato que, no começo, assavam fornadas semanais no Guará e entregavam pela cidade. Depois, dividiram o espaço com o Papy, tempo feliz para nós, os carboafetivos.
Agora, assentaram pouso e forno na esquina da 714/715 norte, e seguem servindo sonhos que mudam de sabor a cada estação, além de chouxs e bombas, pães cheirosos e uma torta de limão que é poesia pura.
Leia Adélia, dê uma volta, coma um sonho. É domingo, é domingo, é domingo.
Que coisa linda você fez aqui! :) Muito obrigada por dividir conosco. Para quem nunca leu Adélia, por onde recomenda começar?
que delícia esse texto em diálogo com a obra de adélia prado. como a nossa literatura é bonita!