Para ler ouvindo: Chicago, de Sufjan Stevens.
Sejam todos muito bem vindos ao Conchas, esse restaurante imaginário, que, vez em quando, cozinha temas dos mais verdadeiros. No menu de hoje: todas as refeições que não fizemos juntos.
Existem as pessoas racionais, que lamentam pelo que de fato perderam, elaborando um luto condizente com o que já passou e acabou.
E existe o resto de nós, que sente saudades de tudo que não vivemos.
Sempre existe alguma coisa que fica faltando quando pensamos em relacionamentos, mas eu fico particularmente atenta ao que não pude cozinhar ou comer, o sabor e a textura que não dividi com alguém, aquele restaurante que não chegamos a conhecer.
Suspeito que, mesmo após décadas de convivência e amor, uma vez apartados, essa lista do que não foi feito ressurge, numerosa e urgente. Todas as refeições pendentes, esperando uma fome que pode nunca mais aparecer, pelo menos não entre duas pessoas.
Para cada laço rompido, amizade trincada, amor interrompido precocemente. Para cada abreviatura de convivência, fica faltando. Falta fazer aquele passeio no Jardim Botânico, aquela viagem para ver o mar. Falta passar a temporada de festas juninas de braços dados, falta um piquenique, um show, uma dança.
Falta ainda um outro café passado no silêncio misericordioso da cozinha, aquecida pela certeza das duas xícaras na mesa e de um dia compartilhado pela frente. Sol ou chuva.Lá fora ou aqui dentro. Juntos.
Quando penso nas amizades, paixonites, enamoramentos e namoricos de toda sorte, está sempre ali também na memória o que cozinhei para aquela pessoa, as vezes em que dividimos o pão, talheres, olhares, a mesa inteira.
Antes mesmo de entender que cozinhar seria uma forma de estar no mundo, eu, criança, sabia que dividir a comida era de grande importância e, não raro, o afeto superava a gula. E o sanduíche era ofertado de boa vontade na hora do recreio, o suco de caju, doce que só, milagrosamente multiplicado na improvável matemática infantil. Até os salgadinhos radioativos e seus tazos (lembra deles?) cedidos para o menino bonito da outra série são inegáveis totens de carinho, de vontade de estar mais perto.
Quem ama nutre, é simples assim, embora com o passar do tempo essa lógica vai ficando cada vez mais intrincada e é preciso oferecer toda sorte de estímulos para demonstrar o que muitas vezes é bem óbvio.
E dá-lhe fatias grossas de bolo de chocolate, capazes de traduzir uma adoração febril e pré-adolescente. E lá se vão pedaços parrudos de torta de maçã para um moço magro. Suspiros para um rapaz celíaco. Pães de queijo. Biscoitinhos de maisena.Bolinhos de chuva. Broa de milho. Primeiro essas pequenas oferendas, carregadas na mochila para a escola, faculdade, primeiro estágio, no segundo, em tantos corredores, na copa, no estacionamento.
E, depois, ainda jovens mas nem tanto, movemo-nos para os jantares improvisados, regados por vinho barato e massa, sempre muita massa.
E, depois, chega o tempo do compromisso e, com ele, as receitas elaboradas com esmero, o encontro que começa na feira e termina no sofá, as frutas picadas na madrugada, o último gole de café gelado ou de vinho quente, tudo que passou do ponto mas que está ali, milagrosamente, na hora certa.Sabe?
Poucas coisas são tão íntimas, pessoais, vulneráveis quanto cozinhar para um interesse amoroso. Se deixar ver no corte torto das cebolas, nas lágrimas involuntárias, no tempero que podem passar do ponto por pura emoção de estar ali, cotovelo com cotovelo na minúscula bancada.
É preciso coragem para se deixar desnudar nas lascas nas canecas, no desencontro dos talheres de jogos diferentes, nas pequenas manchas no tampo da mesa, no pinga pinga da torneira por consertar, no estado cru em que se vive, como quem diz: olha, eu vivo assim, o cheiro engraçado da geladeira também sou eu, essa bagunça me diz respeito, você aceita?
E aceitamos, de bom grado, sedentos que somos pelo encontro, pela partilha, pelo amor, palavrinha picante, ácida e amarga, agridoce e salgada. E nos permitimos sonhar com as refeições futuras, com manjares dos deuses, com banquetes que talvez não cheguem a acontecer.
Não vejo como pode ser diferente. E é Mario Quintana quem lembra, quem ama inventa as coisas que ama. E inventa receitas de começo, meio e fim.
O consolo? Existem sempre novos apetites esperando por nós nas curvas mais improváveis. Existem pessoas maravilhosas, ainda desconhecidas no momento presente, que serão capazes de despertar novos aromas, inspirar pratos, dividir meio mundo de segredos e temperos de lugares distantes. Outras refeições serão feitas, outros planos lançados, novas listas de lugares, de sabores, de vontades. Não é bom? É.
Com fé, e tempo, seremos consolados com maçãs, seremos seduzidos com chocolate e vinho, seremos restabelecidos com caldos grossos que perfumam a casa toda. É preciso acreditar: seremos alimentados. Seremos alimento e comunhão, e não estaremos, ao menos na mesa, ao menos na fome, ao menos uma vez, sozinhos.
Que lindo - eu sorri.
Que lindeza! Senti frio na barriga junto, lembrando de coisas parecidas que aconteceram comigo. Pra gente que come e vive e presta atenção, cada gosto leva a alguém ou algum lugar, mesmo.
Em um relacionamento passado, quem ficou com os copos, os talheres, os pratos, foi ele. E até eles, os objetos que assistiram a esse amor, se separam e viveram novas coisas, com novas pessoas, eles próprios. Mas sinto falta. Dos objetos. Hahaha. Beijos!