Você pode ouvir este post, mas, se for ler, deixa tocar a playlist homônima desta edição <3
Tal qual João do Santo Cristo, abri os olhos, mas não quis me levantar. Tempo nublado, será que a chuva vem?
Ontem fui num show lindo, Letícia Fialho abrindo os caminhos para nos elevarmos com a voz hipnótica da Céu, no palco musical da Bienal do Livro de Brasília. Como sabem, estamos seguindo uma sobriedade etílica neste outubro, então a ressaca aqui é de outra ordem.
Na cama, fiquei me remoendo quase imóvel, você sabe como é isso? O corpo parado, a mente a mil. Os dias e noites e madrugadas tem sido assim.
O show foi uma indulgência, um ato de amor de criar um momento de fruição no meio do caos lamacento que nos ronda.
Mas fiquei sim tristonha; pouco público, pouca gente interessada em tantos e bons livros pela bagatela inicial de dez reais ( lembrando que: livros físicos não podem ser corrompidos por formigas, uma grande vantagem). Poucas almas ali, presentes, entregues, embaladas pelos acordes, corpo e canção em sintonia. Eu era uma delas.
Então, não queria abrir o Conchas hoje. Isso acontece mais vezes do que tenho coragem de revelar. Eu que inventei e fico querendo me desfazer. “Ah, mas quem se importa". “Quem vai ler isso”. “Não muda nada”. Ora, se não é Mario Quintana, poeta gaúcho querido, cujo nome estampa a casa rosada mais linda da América Latina, que escreveu: Quem ama inventa as coisas que ama. Então, por isso, estamos aqui.
Mas abri fora de hora, passou o movimento do café da manhã, do brunch, do almoço em família e eu fiquei aqui, perdida no tempo, sem saber se foi ou não tempo perdido. Quanto mais eu me afasto da lógica diária do calendário gregoriano e me abro para outras formas de pensar, quanto mais eu troco o “tempo é dinheiro” por “tempo é arte", mais eu me sinto flanando, viajando nas possibilidades.
Mas embora seja lindo e divino e justo sonhar com outras coisas, o mundo real, o Brasil de outubro de 2022, a fome que nos ronda é muito, muito concreto.Diante de tudo isso, fico aflita, estou sozinha do outro lado do balcão, o que será que eu tenho a oferecer aos comensais, hoje?
No fundo eu sei. A gente sabe. É a mestra, a capricorniana mais doce que já existiu, Nina Horta, que sempre, sempre dizia: cozinheira é quem sabe o que vai fazer para o jantar.
Então, vou cozinhar, nem que seja só para mim. No começo é sempre pra gente mesmo, é um exercício de boa fé e confiança de que, mesa posta, há de surgir outra boca para comer junto.
Cortar cebola, descascar alho, dourar na combinação exata de azeite bom e manteiga nova. Quem sabe um alecrim pra perfumar, um tomilho, uma sálvia. Deve ter cenoura, tem. Aipo congelado? Serve.
Não é nada, não é nada, fiz um mirepoix(que se pronuncia "mirepoá") no fundo de panela. Vinho branco perfumado pra deglacear tudo, e enfim tomates, pequenas cerejinhas, plantados pelas mãos hábeis de um moço cheiroso. Fogo baixo, pimenta preta e o sal. Deixa apurar, deixa transformar. Deixa, pelo menos agora.
Claro que isto é um molho, que clama pela grande saída: pasta e basta. Tendo crescido em uma família carboafetiva, a tríade pão-macarrão-bolo estão sempre ali, guiando e nos abençoando, é sempre a hora da nossa massa, amém. Distraída de tudo, vou juntando como quem não quer nada ovos caipiras, farinha de trigo e o sal, que sela todas as coisas.
Poucas estruturas nessa vida são tão fundamentalmente belas quanto a boca de vulcão de farinha que montamos e preenchemos com o líquido viscoso cheio de vida de ovos de gema laranjinha.
O magma se mistura e vai sendo absorvido e transformado, com o calor das mãos, a rigidez da bancada, a umidade da clara, a riqueza da gema. Quando chego em um resultado homogêneo e elástico, embalo a massa, e dou-lhe de novo tempo. Deixo, pelo menos por agora.
Lavando a louça de tanta bagunça, vou aproveitando para ouvir e reouvir áudios de amigos com quem tenho trocado memórias, crônicas e declarações de amor naquele aplicativo verdinho, sabe?
E então, para responder a Lígia, aperto o botão e sigo gravando uma ideia que vem pairando. Sim, é sobre o amor. Tudo é sobre o amor.
Depois que envio, fico encucada. Vou abrir a massa, que está agora sim no ponto, e fazer os cortes como posso. Teremos talharim.
Não costumo fazer isso - tenho certa agonia de ouvir minha própria voz gravada, desde os tempos de radiojornalismo na universidade - mas coloco para tocar minhas próprias palavras. Palavra é feitiço.
Então, de repente, somos duas: a Mariana que cozinha, e desenrola a massa com o rolo firme, e abre vincos profundos com uma faca afiada; a Mariana que escreve, mesmo que com a voz, uma parábola, sim, uma parábola amorosa.
Quem disse que não é possível estar em dois lugares ao mesmo tempo e também não estar?
As lágrimas da cozinheira descem, ouvindo a outra falar do que nosso coração está cheio.
São elas, as lágrimas, quem temperam a massa, carente do sal da terra. Mas, diferente do que acontece com Tita, que ao salgar o bolo de casamento da irmã com o sumo de seu amor perdido, estas são lágrimas de alegria, pelo amor reencontrado. Sim, reencontrado em cada novo dia, em cada encontro com o destino, em cada curva que faço e refaço nesta cidade sem esquinas que reaprendo a amar.
Então, de repente, eu entendo. Sei que preciso transcrever em palavras os sons, e dividir com quem quiser ler. O almojanta, essa refeição tão dominical, vai esperar mais um pouco. Eu posso esperar.
Chuva
Só quem vive as transformações do Cerrado pode compreender a dimensão amorosa da chuva.
A água que cai do céu de repente e que pode te pegar de surpresa, mesmo que você tenha esperado e pedido tanto por ela.
O amor acaba. A gente sabe, mas prefere não saber. Mas, como tudo embaixo deste Sol, como a roda de vida-morte-vida, o amor morre pra renascer.
No Cerrado, quando chegamos ali por março, abril, é quando para de chover. Ninguém avisa, mas quem é calango entende os sinais. Vai parando, parando, e de repente os dias são repletos de um céu azul que dói, límpido e sem nuances. Gosto de pensar nesta época como uma solterice recém consumada.
A energia da polaridade masculina em alta, o Sol à pino, os eventos ao ar livre, o agir, fazer, pulsar, o tempo aberto. Dançar no forró do por do Sol sem as amarras de ter um único par. Amar como uma prática esportiva, um exercício do corpo, um capricho da carne. Parece ótimo. E é. Mas.
As semanas vão se consumindo, chama de vela, vão passando os meses e vamos ficando aperreados. Não dá para ficar torrando no sol sem o mínimo de água, o elemento das emoções.
Quando a água começa a faltar na terra, tudo se recobre de cinza, tudo se retorce, seco. Quando a água começa a faltar no ar, sentimos o peso de uma vida árida de afetos.
Começamos a ansiar. Que horas ela vem?
E, na impaciência do desejo, nos iludimos com os falsos sinais. As nuvens carregadas, que queremos crer, são amor, mas são só cilada, resquício de queimada, o fogo queima sem arder.
A gente sai andando, esperando essa chuva chegar. E, no meio tempo, distraídos, nos deliciamos com as belezas, o céu cheinho de estrelas, os buquês de flores de ipê, as primeiras horas do Sol no lago que é mar.
Mesmo assim, querendo tanto, desejando, fazendo rezo, quando ela vem ainda assim nos sentimos desnorteados.
Muito tempo sem chuva, muito tempo sem amor deixa a gente desacostumado para receber. Para ficar em paz. Para se permitir se molhar.
Dirigir seu carro na chuva dá aquele desespero. Mas e se eu colidir? E se. Melhor nem sair. Ficar em casa. Se esconder. Fingir que não é com você.
É um exercício se deixar permitir. É um enrosco passar dos primeiros chuviscos, as carícias desajeitadas que a água faz, a mordida nas mãos, o roçar dos cabelos, a chuva chegando.
E quanto mais perto ela está, mais sentimos o tempo abafado, quente, hálito de brasa, difícil de respirar. O amor chegou mas não de vez, ainda não aceitamos de vez. Estamos, meu bem, por um triz.
E, porque achamos que temos algum controle, partimos para as preparações. Trocar as pestanas ressecadas do limpador de para brisas como quem esfrega os olhos estiolados, necessitados do colírio do céu, da cachoeira e do mar.
Fazemos listas.Comprar uma capa, comprar um guarda chuva amarelo, tirar as galochas do depósito.Cobrir as piscinas, colocar areia nos pratos dos vasos, cobrir o que dá, preparar a terra, preparar o coração. A gente fica feito bobo, tentando se proteger daquilo que desejamos ardentemente e por muito tempo, nada mais humano.
Quando você aceita e essa chuva começa a vir, de vez, com toda sua potência, com alguma previsibilidade - “Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz.”
Quando a chuva chega de verdade, quando o amor verdadeiro chega, ele modifica todas as coisas.
Ele modifica as paisagens internas e por consequência transforma as paisagens externas, e, mais uma vez, a gente vê os canteiros centrais cheios de verde, cheios de esperança, a gente vê tudo brotar.
A água volta para o ar e nos faz respirar com alegria o aroma de todas as flores, os ouvidos despertos pelo zumzumzum das abelhas e o canto das cigarras, pela euforia farfalhante dos pássaros.
Quando o amor verdadeiro chega ele traz a promessa e a realização de pura vida. Não é à toa que chamamos de chuva de bençãos as auspiciosidades do destino, que derramamos chuvas de arroz nos recém-casados, chuva de felicidade, chuva de beijinhos e carinhos sem ter fim. Porque a chuva é amor, o amor é água que rega essa vida árida e faz brotar o que temos de melhor.
Quando a chuva chegar, eu te pergunto, meu amor, você vai se deixar encharcar? Eu quero dançar com você de mãos dadas e de almas lavadas. Tu vens?
Que edição deliciosa! Azeite bom e manteiga nova, me derreti. Beijo.
Que carinho ouvir isso nessa semana árida.
Choveu por dentro <3
beijos