Essa semana acabou a manteiga em casa. Coloquei na lista de compras, antes um prazer possível dentro da rotina, agora, uma necessidade inundada pela apreensão de quem não sabe o que te espera no final.
Acabou também as verduras e, num ímpeto de quinta-feira, parei na entrada da 410 norte, onde uma diminuta feira se impõe contra a lógica cartesiana da cidade. Alfaces, agrião, brócolis dos dois tipos, rúcula, espinafre e couve, tudo ali, esquema um por três e dois por cinco, como em outros tempos. Pacotinhos de legumes também no combo:um por dois, dois por cinco.
Confesso que, em 2022, não tenho coragem de negociar com o feirante, costume de quem frequenta feiras, porque, afinal, não está fácil para ninguém. Apesar disso, testemunhei uma senhora, cabelos cobre, voz de fumante incorrigível, sotaque carioca, que não arredava o pé do desconto. Fechou o tempo quando o moço negou com a cabeça. "Brincadeira tem hora", ela ainda soltou, contrariada.
Me afastei para paquerar os queijos da banca da frente, quase todos devidamente identificados como da Serra da Canastra, que, nos últimos anos, com certeza expandiu e já supera o Everest, tamanha a produção de queijos ditos de lá.
Não me abalo, dependendo prefiro até os da Serra do Salitre e Araxá, nenhum dos dois disponíveis. No entanto, em potinhos transparentes, vislumbrei uma manteiga caseira, sem nenhum indício de procedência, coisa rara.
Perguntei o preço, achei caro, o moço ofereceu uma prova e ainda acrescentou, maroto: "Você nunca mais vai querer comer outra". Se você nunca provou manteiga pura, não tenho muito o que te dizer. Mas eu sim, e, poxa vida, que belezura. Textura boa, sabor suave e delicioso, firme, chamando um pão.
Levei para casa, me esbaldei, pensei na sorte de poder comer manteiga, no privilégio e na afirmação de um amigo querido que se esbalda em colocar uma fatia de manteiga gelada no pão fresco apenas para senti-la derreter na língua.
Manteiga em tudo que eu lembro
E lembrei, mais uma vez, de um trecho de Matilda, livro do Roald Dahl que deu origem ao filme de 1996. Na história, Matilda é uma menina que ama livros e tem poderes mágicos, o que acaba sendo um escape dentro de uma família de charlatões. Ela acaba desenvolvendo um vínculo especial com sua professora da escola, a Mrs.Honey, que é sobrinha da terrível diretora da escola. Um dia, Matilda vai visitar a mestre no pequeno chalé, e, quando é servido o chá com uma fatia de pão e margarina, Matilda se dá conta, pela ausência de manteiga, de que a Mrs.Honey deve ser de fato uma pessoa muito pobre.
Essa conclusão se deve ao fato de que a margarina é historicamente mais barata foi criada para isso. Feita à partir da hidrogenação de óleos vegetais, a margarina foi inicialmente combatida nos Estados Unidos, onde, durante um tempo, a margarina era cor de rosa, por pressão dos laticínios que argumentam, com razão, que a cor amarela poderia confundir os consumidores.
Depois, com a economia falida da Grande Depressão, ela reinou absoluta pelos lares norte-americanos. Depois, também foi adotada em muitos países no pós-guerra, afinal, num mundo devastado, as vacas vão pro brejo e lá se vai o precioso leite que gera a manteiga. Como tantas famílias, a minha também consumiu os dois produtos por muito tempo, sendo que a manteiga passou a ganhar preferência em receitas em algum momento dos anos 2000.
Essa matéria do joio e o trigo explica bem os motivos pelos quais hoje mudamos o padrão de consumo, uma vez que a ciência provou que os compostos da margarina são prejudiciais à saúde a longo prazo. Além, é claro, da enorme diferença no sabor.
Conferir sabor, aliás, é uma grande característica da gordura, principalmente aquela presente nos derivados do leite. Isso os franceses sabem muito bem, uma vez que a culinária francesa não se priva de doses generosas de manteiga em tudo quanto é preparação, por isso a grande ironia de justamente um francês, Hippolyte Mège-Mouriès, ter desenvolvido o tal creme vegetal que se presta a substituir a manteiga.
Cate por aí
Esta semana, assisti ao último episódio de Julia, série da HBO que retrata um período da vida de Julia Child, grande personalidade da gastronomia e responsável por introduzir a culinária francesa para os americanos.
É de longe uma das melhores séries para quem ama comida dos últimos tempos. A manteiga está sempre presente enquanto acompanhamos Julia, do omelete francês que dá início a tudo até o pecaminoso suflê de chocolate que encerra a temporada.
Em algum momento quero falar mais sobre Child e algumas outras mulheres que moldaram muito do que pensamos e como falamos sobre comida até hoje, o que acham?
Em uma última fatia, também essa semana li uma ótima edição da Uma Palavra, newsletter da Aline Valek, onde ela conta um pouco sobre a expressão alemã "alles in Butter”, algo como “tudo na manteiga!” para dizer que está tudo certo. E deve estar, mesmo.
Até a próxima vez,
Eu acredito no poder reparador da manteiga, que une com seda e sentido todas as coisas, assim como algumas palavras juntadas direito. Como você juntou tudo isso aqui nesse texto? Que bom que juntou.
Mais um texto espetacular; característica marcante da Escritora é a leveza e tom poético com que ela brincar com as palavras.A escrita tem delicadeza e a precisão de pontos e alinhavos que começam sem muita pretenção ,no caso a manteiga, e ganha proporções inesperadas e surpreendentes que nos leva além do derivado.No final a trama vira um belo bordado..E manteiga? texto tão gostoso que eu daria tudo agora por um pão quentinho...lindo. impecável texto