Foi muito rápido, um instantinho mesmo de descuido, enquanto eu caminhava de volta para o carro em uma das quadras comerciais da Asa Norte. Para quem visita a capital, as quadras que compõem o Plano Piloto podem parecer repetitivas como fileiras do avião que pretende emular.
Mas quem vive qualquer fatia de vida que seja por essas bandas vai criando conexões mentais com cada conjunto de blocos.
É a quadra onde mora (morava?) fulano.
Ali estagiei em uma firma no abafado subsolo.
Essa é a quadra onde tomei o primeiro suco Gummy.
A SQN onde roubei aquele beijo, cai de bicicleta, abri o caderno e fiz com que todos respondessem as perguntas que pareciam tão cruciais aos 16 anos.
É a comercial onde aluga filmes de arte na última locadora que resistiu aos novos tempos até o limite.
Pois bem, foi em alguma quadra que não me lembro nem o número nem a associação afetiva que vi um homem carregando duas caixas de papelão retangulares. Reconheci a logomarca que julgava extinta. Panitalia Pão Italiano. E entendi imediatamente do que se tratava.
Sanduíches de metro. Quem se lembra deles?
Os sanduíches de metro foram uma coqueluche nas festinhas de aniversário, coquetéis, coffee breaks e toda sorte de reuniões sociais ali naquela zona entre o fim dos anos 1980 e começo dos anos 2000.
Embora a invenção do sanduíche - pão, recheio, pão - seja atribuída a um ao aristocrata inglês John Montagu (1718-1792), 4º Conde de Sandwich, o ato de rechear duas fatias de pão é dessas coisas, que, tenho para mim, foram “descobertas” simultaneamente, em muitas partes do mundo.
E depois readaptadas, copiadas, esquecidas e resgatadas. Até porque dá para dar voltas nisso, e chegar de novo no Brasil, onde a invenção do sanduíche de metro é reconhecida como sendo de autoria da banqueteira Edna Queiroz.
Eis a anatomia dele: uma baguete mais larga, mas com massa macia, capaz de abrigar recheios que variavam entre pasta de alho, atum ou azeitona, maionese ou requeijão, passando por folhas de alface,fatias de tomate, queijo muçarela ou prato, presunto, mortadela ou peito de peru, salame, frango desfiado, cenoura ralada, caponata de berinjela. E, se fosse muito, muito chique o anfitrião, rúcula e tomate seco entravam na jogada.
Na verdade, são meramente sugestões e lembranças dos sabores que provei, e eu não duvido nem por um minuto que as variações de recheio regionais extrapolariam qualquer lógica, pois Brasil. Está ai o fenômeno do cachorro quente em diferentes estados, que não me deixa mentir.
Mas o sanduíche de metro de padaria é o tipo de coisa que minha mãe comprava uma única vez e, depois de destrinchar os sabores, entender os preços e multiplicar pelo número de convidados, se convencia de que era capaz de fazer suas próprias versões.
E fazia, mas sem alguns elementos: os palitos espetados com fios de ovos, que elea sempre desprezou e que não tenho registro de ver sequer em bolos em toda a vida e as cerejas de chuchu ou chuchurejas.
Aí está outra abstração belíssima daquela época, que eu acredito que persista até hoje em confeitarias e sorveterias do interior.
Por sua infinita docilidade, tanto o chuchu quanto o mamão verde são a matéria prima capazes de absorver sabores e render um doce em calda rubra, onde repousam bolinhas de sabor conquistado com pó de gelatina ou corante, licor ou outros segredos. Não sou capaz de chamá-las de falsas cerejas, pois me deram muitas alegrias verdadeiras.
Era na casa da Duda, amiga loura e boa da infância, que eu me esbaldava. Pois mãe de Duda, tia Celine, sempre foi uma exímia produtora das tais iguarias. Armazenadas em grandes potes de vidro, eram adicionadas em sorvetes e bolos. Isso quando não as surrupiávamos puras, de colher, a calda dulcíssima escorrendo pela garganta, arrematada por um gole de Guaraná, numa época em que o paladar permitia tanto açúcar e a vida parecia, por consequência, muito mais doce.
Esse gosto, e o cheiro do pavio de pequenas velas sendo apagadas, e a textura molenga da parte de baixo do pão de metro, e o chão grudento, os balões estourando, e o granulado de chocolate gordurento colado no céu da boca, a cor do papel crepom que envolvia balas de coco e manchava a roupa. Você vê como é a memória, encadeada, sobreposta. Uma festa, é o que era.
Ah, quanta lembrança! Rs… Eu adoro sanduíche de metro até hoje, mesmo ele sempre desmontando na mão e perdendo ingredientes até chegar à boca. Agora a chuchureja… eca! Essa sempre detestei. E todo mundo me olhava feio por isso.
Adoro seus textos!