Perdoem a distração, o arroz secou.
Pode ser que tenha acontecido de uma hora pra outra. Você se senta na sua padaria preferida, aquela com pão fresco, manteiga boa e o preço ainda honesto e, quando o atendente que te conhece pergunta se você vai querer “o de sempre", alguma coisa trinca dentro de você.
Qualquer que seja o pedido que te deu alegria até ali - pão com ovo, requeijão na entrada ou na saída, empada de palmito, suco de cajá - aquilo para completamente de fazer sentido. Você se levanta e sai, apressado, constrangido. Sem fome e, ao mesmo tempo, sem apetite.
E sem querer acreditar.
Pode ser que tente de novo, no restaurante preferido; pede a massa, que chega igualzinha, mesmo aroma, as folhinhas de manjericão, o queijo ralado na hora, a cor do molho, tudo ali parece igual. Mas só parece. Na boca o gosto não é o mesmo. A cabeça faz malabarismos para entender o que será: amargo, salgado, azedo?
O garçom que te atende há anos, décadas talvez, vem ao seu resgate. Quer sal, pimenta, azeite; quer embalar para viagem? Você pega a embalagem, volta pra casa, entrega para o porteiro suspeitando, e não sem razão, que o gosto não vai se ajustar.
Talvez tenha acontecido aos poucos. Uma calça que você ama, que serve bem, com bolsos que cabem tudo que você precisa, um modelo que é a sua cara, que seus amigos e familiares conhecem bem, que apareceu em tantas fotos. Você veste, se olha no espelho e tem alguma coisa que não funciona.
No outro dia é um brinco de pérolas, uma sapatilha vermelha, tão característicos, de repente não te apetecem. Uma névoa paira na sua mente, e uma sensação de enjoo - ou azia - passa a te acompanhar em toda refeição.
Você passa a responder aos convites, aos pedidos e às conversas todas com uma das piores, mais sintomáticas frases da língua portuguesa: Tanto faz.
E não é para fazer tipo, não. Em algum momento, se nada vai satisfazer, tanto faz mesmo. Frango ou massa? Café ou chá? Tanto faz.
Você não sabe, ainda, mas pode ser que isso se espalhe. Para o trabalho, que você costumava gostar e ficar feliz em entregar. Para suas relações: como pode, o gosto de um beijo desbotar desse jeito? Para sua casa, seu templo até então, que vira um lugar inóspito, cheio de problemas, com paredes de cores irritantes, uma prateleira perpetuamente empenada, um quadro - que você mesma escolheu - feioso. Horrendo, até.
Um dia você vai acordar e sua vida, de cabo a rabo, vai estar irreconhecível, uma peça de teatro em aramaico, na qual você é plateia e cenário, porque não se sente como um ator capaz de desempenhar seu próprio papel.
Já te aconteceu? Espero muito que não mas, se eu tiver que apostar, eu diria que sim.
Tudo que eu queria era forrar uma mesa grande e farta para você, para nós, para essas pessoas que tiveram suas certezas movidas de lugar.
Para toda gente que, rápido ou devagar, de súbito ou em doses homeopáticas, se viu tendo que sustentar uma mudança que ainda não aconteceu, tendo que viver na travessia entre uma coisa e outra. Um fim, sem um novo começo ainda. Não é um lugar, não é um sabor, é você. Você mudou e o mundo continua girando.
E não importa que as folhas do calendário sejam viradas, seja ele gregoriano, lunar, astrológico ou, na tradição brasileira, a vida após a Quarta-feira de Cinzas. O tempo do lado de fora não consegue dar conta das paisagens internas, que existem em outro nível de consciência.
Vai ser preciso persistir, pelo tempo que for. É como aquelas receitas antigas, rascunhadas em cadernos amarelados, que indicam assim: o quanto baste. Temperar a própria vida, cozer as próprias intempéries. Porque, em algum ponto ( mal passado?) é capaz que se descubra uma renovada fome. Ou uma pequena obsessão por rabanetes, uma prática de dança obscura, um clube sobre o qual ninguém fala nada. Uma caminhada que corta vários bairros, até que um cheiro insuspeito te arrasta até um pequeno salão de onde saem fornadas nada pontuais de novos sonhos…
Que texto gostoso! <3
Tão bom te ler 😍