Sejam bem vindos ao Conchas, este restaurante imaginário que abre aos domingos e que, pela própria natureza, se transforma.
Hoje, afastamos as mesas, reduzimos o menu para comida portável: empanadas. Pipoca cor de rosa. Salgadinhos.
Melhoramos o plano de internet, o Wi-Fi está trincando e não são poucos os pontos de tomada.
Está preparado para apertar o play? Hoje, o Conchas abre como lanhouse.
Vamos jogar?
Eu estava em minha baía de trabalho, de frente ao computador, diante de mais um dia de expediente sem sentido. O relógio da repartição marcava as horas lentamente. De repente, me lembro de uma carta perdida na minha gaveta. É uma carta do meu falecido avô, que ele havia me entregado anos antes, naquele que seria o nosso último encontro. Na época, ele me recomendou ter paciência, e disse que chegaria o momento em que eu me sentiria esmagada pelo fardo da vida moderna.
Ao abrir a correspondência, descubro que ele deixou de herança para sua neta querida a escritura de sua fazenda no Vale do Orvalho. Será que eu teria coragem de largar meu emprego em uma grande corporação e abraçar a vida no campo?
Eu tive.
E, quando vi, estava cortando madeira, semeando batatas, explorando as redondezas, fazendo amizade com o pessoal do vilarejo mais próximo, que tinha uma estrutura simples: casas, prefeitura, farmárcia, mercadinho, médico.
Eu não vou te enganar: a fazenda estava largada.
Mas o espírito do meu avô parecia me guiar, e aquela gente era gentil e capaz de dar bons ensinamentos. Aos poucos, fui aprendendo com a lida do campo. Comprei galinhas e tive ovos frescos para um café da manhã que me deu mais energia.
No final dos dias de trabalho, ligava a obsoleta televisão que estava na cabana e aprendia receitas novas em um programa da Rainha do Molho. Dormia o suficiente para repor as energias e começar tudo de novo e de novo.
"Somente nos sonhos, na poesia, no jogo — acender uma vela, andar com ela pelo corredor — aproxima-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se somos". - Trecho 105, Jogo da Amarelinha, de Julio Cortazar.
Nas vezes em que ia até a praia - sim, o Vale do Orvalho tem fazendas, montanhas, praia e até deserto - eu catava conchas na areia, conversava com o velho Willy, que me vendia minhocas e minha primeira vara de pescar.
Volta e meia ele me pagava uns trocados quando eu pescava e entregava espécimes específicas, o que era um adianto para as contas da fazenda.
No primeiro ano ali, eu vi as quatro estações passarem e, com elas, as mudanças das cores no campo, das espécies de cogumelos que surgiam embaixo das árvores depois de um dia chuvoso, das flores que cresciam sem ninguém plantar. Fiz amizades, paquerei, ganhei um cachorro. Encontrei rubis e ametistas no fundo do lago. Folhei livros em línguas estranhas na biblioteca pública.
Participei alegremente dos festivais da cidade, caçando ovos escondidos na Páscoa, comprando sementes para a próxima estação, ajudando a reformar o centro comunitário.
Quer dizer, eu mesma não fiz nada, estava no sofá de casa, apertando botões, mas minha avatar estava ali, vivendo estas coisas.
Todas estas eram cenas vividas em Stardew Valley, um video game indie de simulação de fazenda criado inteiramente, incluíndo sua relaxante trilha sonora, por um único homem: Eric Barone.
Para dimensionar o feito dele, é preciso entender o tamanho de sua empreitada criativa e o ineditismo do que ele conquistou.
A indústria de video games é, hoje, tão grande, lucrativa e trabalhosa quanto a de produção de filmes e séries. Isto porque, desenvolver e lançar um video game demanda tempo, dinheiro e equipes tão especializadas quanto aquelas capazes de criar fenômenos cinematográficos.
Os estúdios de jogos empregam centenas de desenvolvedores, roteiristas, designers, atores, coloristas, animadores, músicos, tradutores e dubladores, enfim, muita gente trabalhando horas a fio todos os dias por anos para entregar uma experiência imersiva, narrativa e de entretenimento.
Então como um único cara foi lá e fez?
Bom, o primeiro ingrediente para isso é: obsessão minuciosa.
Em um perfil publicado pela revista GQ em 2018, dois anos após o lançamento, Eric explica seu processo na concepção do jogo, que hoje é um best seller com mais de 20 milhões de cópias vendidas, uma grande comunidade de jogadores que são fãs, muitas críticas positivas.
"Crio. Passo para outra coisa. Volte e recrio. Crio. Vou em frente. Recrio." Essa insistência, a constância de se dedicar a mesma coisa, a fidelidade ao projeto, me fazem pensar na construção de qualquer obra que importe.
Foram quase cinco anos, sozinho, em casa, trabalhando em absolutamente todos os aspectos daquele universo ficcional. Eu não sei, mas, se fosse chutar, diria que Barone é pelo menos um pouco interessado em comida. Porque este é uma grande parte da história de Stardew Valley, além de estar presente no novo projeto dele, Haunted Chocolatier:
Preciso abrir um parênteses aqui e contar que nunca fui uma grande jogadora, gamer, no sentido clássico.
Além de CD-Rooms de gosto duvidável que rodavam no Windows 98 do meu pai - Twinsen’s Odyssey , depois eu descobri, é hoje um clássico do segmento - eu jogava mais na vida real, de canastra a dominó, jogo da memória,Uno, War, coisas assim.
O que acabava me chamando a atenção era achar espelhos dos meus próprios interesses nos jogos, ou seja: comida. Dinner Dash e Cake Mania são o tipo de coisa que consumiu incontáveis horas da minha adolescência, e são jogos que hoje parecem bobos, mas eram ótimos em simplificar processos complexos como abrir e gerir um restaurante, assar bolos e atender clientes exigentes.
Não tivemos consoles de jogo em casa até que a Julia, minha irmã do meio, resolvesse adquirir um PlayStation 2, que ela tinha mais habilidade em jogatinas de God of War, GTA,
Gabriela, a caçula, era campeã indiscutível das batalhas de Dance Dance Revolution, jogo que simula as máquinas de dançar. Acoplávamos os tapetes munidos de sensores e, durante a duração da música, nos empenhávamos em pisar na seta no momento certo. Era divertido, e não deixava de ser uma espécie de ginástica.
Eventualmente, sucumbi, como tanta gente, ao The Sims, jogo de simulação da vida, no qual você cria seu personagem, constrói uma casa, escolhe uma carreira, melhora suas habilidades, ganha mais dinheiro, faz melhorias. Mas desencanei. Orkut, flogs, fóruns de fanfics e blogs de receita começaram a ganhar um espaço maior na minha vida.
Não sei, às vezes acho que é mesmo um privilégio pertencer a esta última geração a viver com um pé no mundo analógico e outro no digital.
Tivemos, os tais millennials, hoje pessoas na casa dos trinta e alguns anos, a grande alegria infantil de poder ao menos brincar com a internet e suas possibilidades antes que tudo, absolutamente tudo virasse especulação monetária, distração, marketing e…trabalho.
Meu jogo maior, mesmo, sempre foi o de inventar histórias e cozinhar.
Nada me dá um senso de missão cumprida como um bolo que sai cheiroso do forno.Ver uma matéria publicada. Sentir o cheiro de um arroz que cozinha direitinho. Servir um prato montado à perfeição, devorado entre amigos. Terminar de escrever um conto. Cozinhar um peixe bem feito, servir um pudim que desenforma certinho, isso é passar de fase. O chefão? Somos nós mesmos, com fome, sem tempo, sem ideia de que rumo está tomando a vida. Na dúvida, cozinhar, porque é preciso comer e ocupar as mãos e a cabeça.
Nos primeiros meses de isolamento social, em 2020, eu passei centenas de horas cultivando minha vida na fazenda digital para a qual eu tão desesperadamente gostaria de fugir.
O avô da história estava certo: chega o dia em que a vida moderna pesa, e, coletivamente falando, não foi exatamente simples passar pelo aspecto apocalíptico da pandemia, agravada pelo fato de ter um governo maligno no Brasil. Não teve jogo de zumbi capaz de preparar a gente pra tudo que aconteceu entre 2019 até agora.
O mundo lá fora, os números de infectados, as incertezas pessoais, tudo ficava de lado quando eu me dedicava aos afazeres do dia no meu rancho pixelado. As interações que eu não tinha como Mariana de carne e osso aconteciam ali no vilarejo, conversando, presenteando com narcisos e pedras preciosas, aprendendo receitas de família, ganhando broto de folhas de chá.
Tudo muito intrincado, um simulacro perfeito, uma repetição mais fácil de suportar do que aquela imposta pelo isolamento, pelo medo, pelo desconhecido. Um dia no jogo dura em média 17 minutos, o que fazia a noção do tempo se bagunçar ainda mais. Horas se passavam, e eu ali, catando cebolinhas num cenário colorido, bebendo poções com um mago que mora na torre na floresta, completando pequenas realizações que não diziam respeito à nada específico.
Foi a primeira vez que entendi, de fato, o apelo dos video games. Que compreendi a capacidade imersiva dos jogos, a fuga que pode parecer necessária pra tanta gente em momentos desafiadores da vida.
Posso dizer que tem a capacidade de ser mais atrativo que uma ficção literária ou que uma fantasia cinematográfica por um motivo: a sensação de empoderamento ao fazer escolhas cujas consequências não podem te alcançar. Não de verdade. É um jogo, afinal.
Existem outros elementos tornam os jogos eletrônicos tão atraentes. O subterfúgio de escrever sempre de lápis e nunca de caneta. Não gostou do que aconteceu com seu personagem? Simples, é só não salvar, reiniciar. Morreu? Não importa, a morte não é definitiva, uma nova vida recomeça sempre que você quiser.Já imaginou quão poderoso é isso para uma mente em formação?
O que é feito pode ser refeito, desfeito. Fazer no jogo, inclusive, pode ser o recurso terapêutico necessário para criar as estruturas mentais para se arriscar na vida. Em tese. Porque a mesma coisa acontece com programas de culinária, vídeos e livros de receita. Pode-se gastar horas neles, mas nada garante que vai sair o rango se não tiver tempo de pilotagem de fogão.
Mas não deixamos de assistir. Existe um prazer na fruição alheia na cozinha que é difícil de capturar e explicar, mas que qualquer pessoa devota de Ana Maria Braga consegue entender.
No tempo em que joguei Star Dew Valley, volta e meia eu conseguia energia mental para fazer convergir os mundos: no dia em que minha pequena avatar desbloqueou a receita de panquecas, eu dei pause no jogo, fui pra cozinha e fiz minhas panquecas para acompanhar o café da manhã. E então eu entendi um dos fortes elementos que me ligaram naquela narrativa: as receitas, que demandavam tempo, podiam ser aprendidas e trocadas e só davam certo com a combinação de ingredientes - itens - específicos. Touché.
Estruturas e comparações
No universo criado por Barone, é possível construir barris de fermentação, e fazer vinho não apenas de uva, uma colheita de outono ( como acontece de verdade no hemisfério norte) mas também de outras frutas.
Geleias também demandam tempo e estrutura. Cultivar caixas de colmeias garante mel, cuja qualidade tem a ver com o tipo de árvores frutíferas que tem por perto. Aliás, estas árvores também demoram a frutificar, e só é possível colher determinadas frutas em determinada estação.
São essas verossimilhanças que me atraem no contexto de jogo. E faz sentido: é o tipo de detalhamento e especificidade que eu adoro ver nos fazeres das pessoas. São os detalhes que nos pegam. Pode reparar.
Durante o tempo em que estive imersa nesta jogatina, uma amiga querida, Clara, fazia suas incursões pelo mesmo universo. De longe, trocamos ideias sobre o progresso de nossas personagens.
Em determinado momento, tínhamos as duas um tanto parecido de horas jogadas. E, no entanto, nossas fazendas não poderiam ser mais diferentes. Nem as personagens. A minha já estava com cabelos coloridos, assim como os meus na época. Clara nem sabia que era possível fazer isso.
Como eu consegui? Fazendo amizade e presenteando o mago que vivia numa torre na floresta, que me deixava usar o Santuário de Ilusões, no porão, que permitia trocar aspectos físicos como cor de cabelo.
Mas, e isso é muito importante, a fazenda da Clara estava um brinco. Cheia de plantações, com irrigação mecânica, cercas, depósitos, muito animais. E, também, muito mais moedas de ouro. Minha amiga passava os dias no jogo trabalhando em objetivos claros. Eu? Flanava meio ao léu.
Penso que o simulacro, aquilo que encenamos em qualquer esfera, sempre nos conta alguma coisa sobre nós. Eu reconheço: não sou a melhor pessoa para criar estruturas.
Tenho uma mente que me brinda com ótimos momentos de imaginação e abstração, mas que é incapaz de, por exemplo, racionalizar espaços físicos, saber se cabe ou não um móvel em determinado cômodo, dar um entendimento mais prático. Não sou a melhor planejadora, eu sinto que estou improvisando desde que nasci.
Mas eu gosto de gente. Gosto de zanzar nos mapas da vida e conversar com toda sorte de personagens que aparece. Não significa que eu não sofra pela falta de estrutura que eu mesmo falhei em criar. Não é isso. Mas reconheço em minha própria natureza as outras habilidades, como aquela de envolver os outros em histórias. E, se você leu até aqui, talvez seja a confirmação de que eu me salvaria, ou melhor, me salvo, como Sherazade: uma história por vez.
Nesta primeira metade da década dos meus trinta anos, a palavra ‘estrutura’ tem aparecido à beça: em sessões de terapia, em conversas entre amigos, nos pensamentos. É a parte que "não gosto” do jogo da vida. Aquela que treinei pouco. A que vi surgir e ruir algumas vezes.
Eu não me orgulho disso, mas consigo admitir: muitas vezes, quando era necessário construir coisas, derrotar monstros e montar máquinas, eu passei o controle para as mãos de outros jogadores. Vivemos na corda bamba entre segurança e liberdade, entregando demais de uma em troca da outra, sem que exista de fato uma fórmula capaz de resolver esta equação. Nem no jogo e nem naquilo que entendemos como realidade, me parece.
Embora reconheça a grandiosidade do projeto e tenha pensado por muito tempo em todas essas reflexões que vieram desta experiência, não penso em tornar a jogar Stardew Valley. Sinto que seria uma fuga, e eu já fui terrivelmente boa nelas.
Acho que, agora, meu delírio é com as coisas reais. Ficar, ao invés de partir.Ver a escrita em páginas físicas. Construir e não só usufruir. Quem sabe até servir refeições no mundo real? Quem sabe.
Eu leio e como qualquer coisa que vc preparar. Vc é muito talentosa, Mari! Amei o texto! Impecável como sempre!