Na virada do ano 2000, surgiu na minha casa, diretamente da Zona Franca de Manaus, um aparelho de DVD e caixinhas de som do chamado sistema de Home Theater que, junto com baldes enormes de pipoca, prometiam emular a experiência de um cinema em casa.
O primeiro exemplar de DVD que chegou para nós, as crianças, foi Tarzan, da Disney, lançado um ano antes. É o último lançamento da chamada Renascença da Disney, que foi de 1989 até 1999, período no qual o estúdio volta a produzir grandes sucessos de crítica e público tal qual Walt Disney havia feito entre 1930 e 1940.
Não à toa, é a década de A Bela e a Fera, Pocahontas, Alladin, Pequena Sereia, Hércules. Tarzan é a raspa do tacho, e adapta uma história escrita por Edgar Rice Burroughs e lançada em 1912 como Tarzan of the Apes.
Pra mim, um dos grandes triunfos dessa animação é a trilha sonora, composta por Phil Collins, que ganhou uma porrada de prêmios, inclusive Oscar e Golden Globe de melhor canção original por You'll be in my heart que é belíssima.
Mas, tem uma outra música, que toca depois que o Tarzan, que cresceu sem pais em meio aos gorilas, descobre que, olha só, existem outros humanos como ele!
Strangers like me fala sobre a fascinação e a curiosidade de Tarzan sobre Jane, o Professor Porter, Clayton e todas as possibilidades do mundo humano que ele ainda não faz ideia, mas que deseja muito conhecer, tocar, se conectar.
Naquela primeira década do ano 2000, não foi só Tarzan que descobriu outros estranhos como ele. Era o começo da internet comercial, e fomos do barulhinho da conexão discada para a antecipação da tecnologia 5G, passando por chats anônimos, fotologs e blogs segmentados e versões rudimentares de buscadores e de redes sociais, as correntes por e-mail e, claro, as newsletters.
Tudo isso num esforço para encontrar pessoas como nós, numa motivação de curiosidade, fascínio, brincadeira. No meu caso, os estranhos como eu, descobri, eram pessoas que se importavam o suficiente para traduzir, adaptar e testar receitas, tirando fotos e postando tudo.
Foi por influência desses blogs que comecei uma busca por ervas frescas como estragão e sálvia, pouco ofertadas naquele momento, bem como limão siciliano, absoluta raridade nos mercados brasileiros. Arroz arbóreo, hoje tão básico até em redes atacadistas, era raríssimo.
Tanta coisa que hoje parece comum na verdade é fruto do acelerado processo de globalização. A expansão dos catálogos de livros de receitas que foram traduzidos para o português, bem como a exibição em canais pagos de programas de comida como o do Jamie Oliver e da Nigella Lawson e o surgimento de chefs celebridades são alguns dos marcadores dessa primeira década dos anos 2000 que ajudam a explicar como chegamos até aqui.
Uma vez, aos quinze anos, depois de muita insistência e perambulação, consegui reunir ingredientes para um risoto, que seria o prato especial para minha avó Iracema, que estava de visita de Minas Gerais.
Por um erro talvez de tradução (ou talvez de interpretação), cortei os dois talos de alho poró, desprezando a parte branca e fatiando toda a parte verde, que foi direto pra panela, tingida por aquele verde quase radioativo, completamente impróprio.
Usar a parte verde do alho poró é exatamente o oposto do que deve ser feito, e sorrio ao pensar na minha vó, que nunca gostou de cozinhar, mastigando educada os pedaços terrivelmente fibrosos da planta na mistura de arroz, caldo e queijo. Esse prato, eu acho, não tinha manteiga que desse pra salvar.
Poder contar isso nos comentários da postagem, ter pessoas compadecidas e empáticas às tentativas culinárias de uma adolescente brasiliense foi o princípio dessa coisa que é difícil nomear, mas que tem de uma forma ou outra moldado minha vida.
Os estranhos como eu são pessoas irremediavelmente curiosas. São aqueles que se importam o suficiente para perguntar de onde veio um tempero e como chegou até aqui, porque o talo e não as folhas, em qual temperatura exata, por quanto tempo é suficiente.
É gente que, hoje, começa seu próprio fermento munido com água, farinha e boa vontade, se alegrando com cada bolha que escapa, comemorando um processo que é tanto natural quanto misterioso e meio incontrolável.
É quem cozinha ovos com diferença de segundos, em tantos métodos possíveis, e documenta tudo, compara a textura das gemas, repara na fragilidade das cascas.
É gente que constrói sua própria composteira, monta uma ilha de fermentação de kombucha no armário da sala, organiza um mutirão para horta comunitária no prédio.
Esses estranhos montam roteiros de viagens tendo as refeições como guia, e justificam com naturalidade desvios no meio da estrada para comer trutas e cogumelos em um restaurante comandado por um gnomo ou excursões para degustar vinhos californianos em um posto de gasolina desativado.
O Larousse Gastronomique coloca gourmand e gourmet no mesmo verbete e define gourmand como o que aprecia a boa comida e o gourmet o que sabe escolher e apreciá-la. Hervé This, pai da gastronomia molecular, é um dos que defende que gourmand é o termo correto para quem aprecia alta gastronomia.
Mas e quem aprecia baixa, média e todas as variações da gastronomia? E quem não sabe cozinhar mas ama comer? E quem escreve sobre comida e não cozinha, e quem cozinha mas não escreve?
E quem decide se concentrar em saber absolutamente tudo sobre café mas não sobre chás, e quem é confeiteiro profissional mas não faz salgados, e quem faz quitutes mas não dá pitaco em bebidas?
Eu suspeito que, para além da categorização, da necessidade de definir, categorizar e criar um nicho, os estranhos como eu são pessoas que se importam.
Que prestam uma atenção aos detalhes, que levantam a pedra para ver o que tem embaixo apenas porque podem fazê-lo. São os catadores de frutinhas, espalhadores de sementes, buscadores de sentido. São pessoas que se recusam a passar pela vida de uma maneira automática, e que entendem que, se é preciso comer para sobreviver, que seja da melhor maneira possível.
Talvez sejamos muitos, talvez estejamos em falta, é difícil dizer com certeza. Mudam-se as plataformas, entra e sai moda de comidas, o lobo da fome volta a uivar atrás da porta e nós estamos aqui, não apenas como os músicos do Titanic, mas como os garçons, cozinheiros, sommeliers do fim dos tempos.
Falando e escrevendo sobre receitas mais econômicas, substituições, experimentos, mas também sobre guerra, escassez, e sobre memória de um jantar inesquecível, sobre viagens, sobre encontros à mesa. Nessa panela cabe tanta coisa, e tem tanta gente ainda para chegar.
Haja água no feijão, pão de queijo no forno, café no bule no balcão do Conchas. Mas vamos nos acomodando, colocando mais um banquinho no canto, lavando rapidinho os pratos de quem já comeu para receber os próximos convidados. Você vem?
Cate por aí
Se você passou na porta e entrou no Conchas, eu assumo que você é, em alguma medida, esse tipo de gente a que me referi. Por isso, deixo hoje indicações de outras newsletters brasileiras de comida!
Receitas da Lena Mattar
Fogo baixo da Flávia Schiochet
Outra cozinha da Carla Soares
Prato feito do Mateus Habib
Coifa do Cirilo Dias
Ao ponto do Rafael Tonon
Tem outras indicações? Quer algum tema por aqui? Me escreve :)