Olá, seja bienvenido ao Conchas, esse restaurante imaginário, experimental, itinerante, literário. Servimos sempre aos domingos para servir bem.
Ao longo da semana, organizamos nosso mise en place ao som de muita música. Às vezes, algumas delas se repetem como os cortes sucessivos na tábua da memória, e é preciso dar espaço para, quem sabe, esmiuçar a letra, temperar os acordes, cozinhar o recheio de uma suculenta crônica.
Tenho caminhado junto com essa mesma canção por dias: Movimiento. Ela está na playlist do Conchas essa semana, repetindo e reafirmando algumas frases que me parecem verdadeiríssimas.
Jorge Drexler, um médico uruguaio que é mais conhecido por ser músico, canta que somos uma espécie em viagem. E que estamos vivos porque estamos em movimento. É uma música que, a seu modo, nos coloca num lugar de humaninhos numa jornada contínua. Me fez pensar muito nos rumos que nossa espécie tomou e tem tomado ao longo dos séculos.
Nossa configuração inicial era nômade. E eu nunca vou ter certeza se a agricultura foi o melhor caminho para o Homo sapiens. Sim, por um lado, foi plantar, cultivar a terra, se fixar que nos trouxe tanto.
O trigo para o pão, as uvas para o vinho, as azeitonas para o azeite. Mas também foi nessa toada que demos para acreditar que algum pedaço de chão é nosso, que cercas dividem espaços, que papel colorido compra coisas. Que o tempo pode ser vendido, que nossos talentos podem ser alugados.
Mas mesmo quando tudo foi se assentando em tribos, vilas, feudos, cidades, permanecia, em alguns, a necessidade, a ânsia, o ímpeto de caminhar, de ir, nem que seja para saber o que tem lá, do outro lado do rio.
Quem vai ficar, quem vai partir
Já me irritou, me deixou inconformada, mas hoje me fascina o tipo de pessoa que vive todavida (leia com a entonação mineira, por gentileza) no mesmo espaço, frequenta os mesmos lugares, pede o mesmo prato, um único sabor de pastel na feira, um mesmíssimo sabor de beijo, dos mesmos lábios, por décadas. Férias? Na mesma casa, olhando para a mesma parcela de mar.
Existe uma beleza crua nesse modo de ser e estar num mundo tão vasto. Uma calmaria rara nos caminhos sempre refeitos, na rotina que repete e molda, nos gestos repetidos e repassados. São essas pessoas que dominam um ofício, que aperfeiçoam uma técnica, que se tornam mestres absolutos.
Mas existe o outro tipo. Os que comeram pé de coelho. Os caixeiros viajantes. Os insatisfeitos, ou curiosos. Os que tem ganas. De atravessar oceanos, de construir estradas onde antes não existia nada. De fugir com o circo.
De trocar em feiras. Primeiro olhares, que mediam o outro, calculando as diferenças, antevendo as semelhanças. Depois, palavras, que, graças a queda da torre de Babel, não diziam muito aos ouvidos alheios. Por fim, trocar o que se produz ou coleta. Apontar com o dedo, depois para a própria boca, quem sabe esfregar as mãos na barriga.Trocar comida.
E imagino que foi nessa troca constante que atravessa os séculos que foram surgindo, a despeito de tradições locais, as variações universais. Já reparou que toda cultura tem seu negocinho recheado?
Empanada, gyoza, burritos, acarajés, tamales, pierogis, raviolis, wontons, samosas, a lista é enorme. A lógica é simples: eleja um recheio entre legumes, carnes, frutos do mar, peixes, ou queijos, faça um tipo de massa de trigo, milho, arroz. Asse no forno ou na chapa, cozinhe em água fervente ou em óleo.Sirva. Todo mundo fica feliz.
Tenho pensado muito e tenho comido mais ainda as empanadas, o negocinho recheado dos argentinos. Onipresentes nas ruas de Buenos Aires, disponíveis em tantos sabores e faixas de preço, enfeitam menus de restaurantes chiques, de bodegóns tradicionais, de pizzarias disputadíssimas, de banquinhas, de quiosques. São boas em todas as horas do dia, perfeitas em sua essência portátil
Mesmo que sejam pouco práticas do ponto de vista da confecção ( quem já fez pamonha ou coxinha em casa sabe muito bem do que estou falando), esses bocaditos de massa com algo mais me parecem celebratórios da nossa pequena condição de mamíferos que se levam tão a sério, que constroem culturas inteiras cheias de intrincados códigos, preferências, disputas.
Quem inventou? Quem disse que não pode esse sabor? Quem faz a melhor, a mais premiada, a mais concorrida?
Já pensou.Umas trouxinhas fofas cheias de humanidade, justamente porque não são uma necessidade, mas um luxo possível, um capricho.
Não é sequer uma coisa que alimenta aos montes, que se faz de uma vez, panelão de sopa. Não nutre necessariamente o corpo, mas alegra os ânimos. Se equilibra frágil nas mãos pequerruchas dos niños.
Ensinam na prática a luta pelo desejar e ter ao testar a paciência de soprar para não se queimar. Antecedem uma parilla de carne farta. Intercalam-se com o gosto do vinho nas mesas ao ar livre.
Não são a primeira escolha dos viajantes do passado, que precisavam salgar, defumar e conservar a comida para que resistisse as travessias.
Dão trabalho pra fazer, demandam tempo para, no fim, serem comidas rapidamente, os vapores queimando o céu da língua, os sucos escorrendo pelos dedos, o brilho gorduroso enfeitando os lábios de quem segue viagem e caminha, se recheando de histórias pelo caminho.
Somos uma espécie em viagem.Não temos pertences, apenas a bagagem.Vamos com o pólen ao vento.Estamos vivos porque nos estamos em movimento.
Uma amiga venezuelana uma vez me disse: “No se comen empanadas con zapatos nuevos.” Empanada boa é aquela de se escorrer o molho!
meu deus, que texto mais mais mais lindo!