Acordei antes de todos. Talvez porque nem tenha dormido de fato.
Venho para o restaurante só, quando abrir não estarei aqui, de toda forma, para não contaminar ninguém. Uma gripe, ou virose, ou mal estar me assola nos últimos dias, e me sinto borocoxó que só.
Mas não é só isso.
Ultimamente, parece, tem dado muito caroço no meu angu, apesar das minhas constantes e vigorosas remexidas, apesar da mania de inventar, apesar das últimas mangas da temporada, dos abacates fartos, da chuva.
Vai ver é o fogo brando, ou a panela, ou os braços cansados de outras receitas. Vai ver sou eu, que não escapo de mim, por mais que tente. Vocês, por acaso, um dia já acordaram querendo ser feitos de outra fibra, querendo ter outros cheiros, uma voz diferente, outra cor de pele, de olhos, de tudo, absolutamente?
Para dias assim, eu sinto que não tenho receita. Mas faço o que posso com uma coisa que tenho sempre por perto. Consulto gente que parece ter tido uma ideia boa, em algum momento, e anotado.
Não sei se vocês sabem, mas o Conchas tem uma biblioteca flutuante. E não digo isso por conta das prateleiras que parecem flutuar no ar, não.
É que os volumes vem e vão. Volta e meia eu noto um velho conhecido que reaparece, como que por mágica, no momento preciso.
Acreditem, se eu soubesse como funciona, eu seria livreira, profissão que é quase como farmacêutica de almas, recomendando o livro que possa contribuir para sanar a dor, que não é só física, do leitor que perambula pelos corredores de livros, enfermo de si.Conheço intimamente a sensação, que desde nova me arrastou por bibliotecas das mais variadas.
Mas eu só consigo testar unguentos literários em mim mesma, mal e mal, e não consigo fixar um método. Sigo pela aleatoriedade, pela intuição e pelo franco improviso, confio que vou encontrar e uma hora acontece.
Então, cheguei cedo para vagar pelos livros. Quem será, quem será? Adélia Prado? Não, apesar de que, assim como essa mineira metódica de Divinópolis, autora de um dos melhores poemas sobre vida doméstica em língua portuguesa,de vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.
Porque estou meio aérea, e porque sou francamente mística, abro Um Sopro de Vida, de Clarice Lispector, apenas para ser retoricamente esbofeteada com a luva da mais fina pelica:
“Eu escrevo por intermédio de palavras que ocultam outras - as verdadeiras. É que as verdadeiras não podem ser denominadas.
Mesmo que eu não saiba quais são as "verdadeiras palavras", eu estou sempre aludindo a elas. ”
Caramba, Clarice.
Bom, ao menos sei que, agora, devo rumar para uma verdade, ainda que inventada.
Invoco minha padroeira das panelas, Nina Horta.
Sei que ela não vai me desamparar, e abro O frango ensopado da minha minha mãe na crônica Meia Verdade, que começa assim:
“Vou confessar que a coisa de que mais tenho vontade, num dia sem inspiração, é divertir e agradar os leitores com uma bela mentira. E o pior é que não consigo. Mas o espaço que tenho é de crônicas, e a crônica não pede verdades absolutas.( Também, quem as tem?)
Minto, minto. Uma vez descrevi um restaurante brasileiro em Nova York nos mínimos detalhes do ambiente, as tábuas do chão, a música e a comida, é claro. Mas, no fim, desmentia — era só um lugar que eu gostaria que existisse.
Imaginem que dez anos ou mais depois recebo noivos para combinar sua festa de casamento. E vinham confiantes, de olhos fechados, pois ele abrira um restaurante em Nova York copiando aquele descrito. A crônica lhe dera ânimo para começar. Estão vendo? Às vezes não é uma verdade, mas uma falsidade que venta na vela dos navios prontos a sair mar afora.”
Ora ora, Nina, é disso que eu estou falando. Era isso que me faltava. Afinal, quem resiste a uma mentirinha, tão boa que é até nome de biscoito?
Bom, mas três é a medida justa, então, fecho os olhos, corro os dedos por lombadas, puxo um deles. Um alfabeto para gourmets, de MFK Fisher.
Dou um risinho, porque foi Nina quem indicou e revisou a edição em português, esta que tenho em mãos e que está, faz anos, esgotada.
Mais cedo ou mais tarde, sinto que preciso dedicar uma edição à MFK, ou Mary Francis Kennedy, que tão bem enganou leitores em uma época em que anônimo era, via de regra, uma mulher.
O título, aliás, não é enganoso. Trata-se mesmo de uma obra escrita em ordem alfabética, com um tema por letra. Abro no L:
“L de literatura e dos banquetes que a imaginação pode proporcionar […] Não há dúvida quanto a possibilidade de se encontrar satisfação, alimento e saciedade nos banquetes de terceiros.
Mais de um prisioneiro de guerra, fugitivo, já me falou sobre a curiosa paz que se apossa de um grupo de homens famintos quando discorrem interminavelmente a respeito dos pratos deliciosos que já saborearam e desejam saborear de novo. Eles sussurram o tempo todo nas celas e pátios murados, sobre as tortas que as irmãs costumavam assar, sobre a maneira como Domenico, de Tijuana, grelhava codorna caçada clandestinamente, e sobre as massas de Boueucc de Milão, antes da guerra.
Engolem sem mais delongas o pão embolorado e a sopa aguada da prisão, enquanto o paladar espiritual mergulha nos sabores, calores e texturas recordados.[…]
Mary do céu. Então, no fim, é sobre isso. É do que todos gostam, é o motivo pelo qual estamos aqui, debruçados no balcão.
Imaginar com tantos detalhes que é quase como se fosse possível trazer à tona os sabores, os aromas e as texturas. Então, me pego diante de um suntuoso banquete para a refeição que eu, pessoalmente, comeria o dia inteiro: o café da manhã.
No ocidente, que é onde estamos, parecem existir preferidos silenciosos na hora de se quebrar o jejum imposto pelo sono dos justos.
Um pão cheiroso, bem assado, crocante por fora, com o miolo cheirando a nozes. Um pão que deixa rastros de farinha no pano de prato, na tábua de madeira e nos dedos reluzentes da melhor manteiga caseira.
O que não dispensa, obviamente, uma fornada de pães de queijo legítimos, com cheiro, gosto e composição de muito queijo de Minas, leite gordo e ovos frescos, polvilho azedo e doce em proporções secretas, que são passadas adiante apenas no leito de morte de senhorinhas mineiras comprometidas com os segredos de sua gente.
Ovos, feitos à cremosa perfeição, como nos clássicos hotéis. Ou dobrados em caprichosos omeletes de queijo, cebolinha e pimenta preta, úmidos por dentro, mas com as bordas queimadinhas.
Ou ainda, ovos cozidos na água ou escalfados - o famoso poché - com a gema amarela âmbar - os ovos imaginários, saiba, são sempre caipiras- e servidos em uma fatia levemente tostada daquele pão, sob uma cama de fatias finíssimas de avocado benzido com gotas de limão siciliano.
Ou, ainda, ovos mexidos, unidos com um perfeito, macio e recheado com queijo de coalho cuscuz de peitinho, esta preciosidade erótica, capaz de sustentar um homem trabalhador ao longo do dia tanto quanto o seio da amada lhe sustenta noite afora.
O café não pode faltar, a não ser que você jamais o consuma, o que é estranhíssimo, de toda forma.
No café da manhã ideal, você escolhe os grãos e o método, mas vou deixar aqui a sugestão para as primeiras horas do dia: coado, em filtro de papel, grãos bons mas seguros, com um pouco de sabor achocolatado.
Torra firme, cujo cheiro seja capaz de reacender memórias dos tempos em que se ia para escola e cujo despertador era o bule cheio, mas cujo gosto seja muito, muito melhor do que aquele de outrora.
Além do café preto, é preciso que se tenha um suco, e o candidato universal, de fácil acesso, ainda que em sua versão pasteurizada, é o suco de laranja.
Se for o que você mais ama - o gosto de caixinha, por exemplo, sempre me lembra a primeira vez que eu andei de avião - não tem problema. Se puder, que seja espremido na hora, mas, claro, pelas mãos de outra pessoa.
Estas mesmas mãos, seguramente, irão picar mais três ou quatro variedades; melão, mamão, morango, melancia. Sim, todas frutas começadas pela letra M. Aliás, uma vez, por puro capricho linguístico, fiz uma salada de frutas apenas com exemplares com a letra M. Além das citadas anteriormente, mirtilo, maçã, manga e mexerica completaram o bloco, adoçado, ainda, com mel.
Se você tem, na inicial do nome, esta letra, ou é a inicial de uma pessoa muito querida, eu sugiro sem reservas que a prepare o quanto antes.
Por fim, existe a questão dos doces. Se você gosta de consumi-los logo pela manhã, o que em geral não é meu caso. Mas sugiro com convicção panquecas, daquelas americanas, bem fofinhas, cheirosas, ótimas com uma boa geleia feita em casa.
Ou ainda um bolo, e, para além do universal pão de ló, que pode ser alegremente molhado no café, creio que o bolo de fubá, com ou sem goiabada, tem muita dignidade para as primeiras horas do dia.
Mas, suponho que a decisão adocicada de qual quitute consumir no início da manhã fica para a imaginação de cada um, e vai depender, é claro, da disposição na qual se acordou, aonde, ou, ainda, com quem.
Não é nada, não é nada, e mais uma vez me sinto sã e salva, amparada por mulheres que viveram, cozinharam e escreveram antes de mim. Espero que você também.
porra, bonito isso aí que cê escreveu, hein.
Olha, cardápio de hoje estava daqueles de querer repetir. Obrigado por convidar MFK Fisher também.