Seja muito bem vinda ao Conchas, este restaurante imaginário. Por aqui, abrimos quase todos os domingos, servimos bem para servir sempre, nos lançamos em pequenas e grandes reflexões sobre comida, vida, amor.
Hoje, vamos ficar no quintal, sentindo o cheiro de terra molhada e ouvindo o cair das mangas.
Para ler ouvindo: Rosa menina rosa, na voz da Céu.
Alguém me disse, não lembro quem, mas pareceu aquele tipo de acerto que faz nossas sobrancelhas arquearem, as duas ao mesmo tempo. A mangueira é a verdadeira árvore de natal dos trópicos; aquela que esta simultaneamente com folhas verdes e frutos avermelhados, trocando de cor.
Nesta estação, as araras e maritacas e sabiás se esbaldam nos melhores frutos, bicando o que está no alto, rompendo com as garras a pele macia em tons de degradê apenas para revelar a polpa amarela.
Tropical na essência - cheiro de coisa madura e sensual, jasmim e patchuli. Um cheiro que gruda na pele, que prega no chão, que adere. Como você.
Você é um um homem dourado, vestido de laranja, como os monges nômades do ar que fazem piruetas sem sair do lugar. Apareceu ninguém sabe de onde, vai pra onde o vento for. Possivelmente para perto do mar.
De alguma forma, sinto que o sal da maresia te agrada e, além do mais, tempera seu temperamento como as mulheres na feira fizeram no mês passado quando as mangas ainda estavam verdes e eu não te conhecia.
Quer dizer, você ainda não tinha aparecido, mas talvez eu sempre tenha te pré-sentido.
Foi repentino.
Eu estava lá, sozinha, esperando o espetáculo diário de despedida do Sol, acho que bebericava alguma coisa. Fechei os olhos, deixei o calor hélio passar pelas pálpebras até aquelas bolotas avermelhadas, cometas oculares, me obrigarem a reabrir o olhar para o mundo. E, aí, eu vi você.
Não falamos nada. Não precisava. Eu sabia que você estava ali pelo aroma das mangas e dos derradeiros cachos de flor de jasmim. Eu sabia que você existia.
E, depois, você seguiu voltando, em horas e dias espaçados, surgindo nos lugares mais inesperados, nos momentos de descuido onde a felicidade clandestina pode, serelepe, se instaurar.
Às vezes surgia no quintal, seu porte alongado se empoleirando na cadeira branca, seus dedos fazendo malabares com um cigarro com cheiro de cravo, anis, canela e cardamomo, cuja fumaça esbranquiçada ganhava contornos sacros na atmosfera torridamente aguada.
Nessas ocasiões, nossos olhares profundos, cheios de conversas, eram interrompidos apenas pelo estrondo repentino de mangas que se desprendem e esparramam-se pela grama, pela pedra, pela terra vermelha desse lugar.
Se dependesse de mim, te enfeitaria ainda com flocos de pimenta, como fazem os mexicanos com as frutas picadas. Principalmente manga. Que se faz de tropical, mas que é essencialmente asiática. Oriental. Como você.
E eu não falava de ti para ninguém. Como poderia? Mas te esperava. Te ansiava. Comia mangas de madrugada, cravando unhas e dentes nas cascas tenras. Acendia um incenso indiano pois intuía que era um cheiro que poderia te conjurar aos meus pés.
Fazia bem-me-quer-mal-me-quer mas só com as pétalas de jasmim, que, em número ímpar, me trazem os resultados desejados. Até as flores iam amadurecendo; da cor de leite amarelado, migravam para o rosa manga.
E eu passei a compreender, com a urgência de quem ama, do que falava Caio ao escrever sobre a espera que antecede à chegada de um dragão. Eles são solitários, os dragões.
Eu comecei a temer o fim da temporada dos pântanos de manga, pois te associei aos pés carregados, ao chão preguento com polpa da fruta, ao barulho da chuva de madrugada, às araras.
Não pude deixar de pensar que, findas as chuvas, o que será, que será. Vamos afundar? Ou fincaremos nossas raízes, juntas, entrelaçadas como a Mariri e a Chacrona, da lama das mangas para um lótus em tudo solar?
Eu não sei. Sigo tateando. Mas, na tentativa de conservar sua aura, os aromas, minha sanidade e o frescor da temporada, me acalmo e me reasseguro dos encontros cozinhando chutney. De manga. Doce, ácido, apimentado, aromático e bom. Como você.
Cate por aí
Fazer chutney, esta conserva indiana, é quase uma meditação ativa. Principalmente nestas semanas de mangas e chuva, chuva e mangas. Eu não posso dar uma receita exata; faço mais de uma leva, à medida em que os frutos se insinuam no quintal.
É bom que se tenha uma panela grande e boa, uma colher de pau, as especiarias que mais te tiram do aqui e agora, que te transportam para as rotas abertas por nossos antepassados, pelos caminhos das Índias.
Mas para não deixar ninguém com vontade, eu recomendo esta receita como base e a suas vontades como guia.
Esta edição do Conchas foi inspirada por um belo ensaio da Elizabeth Ann Besa-Quirino. A escritora filipina nos conta, em A Hundred Mangoes In A Bottle - Cem mangas em um pote, em tradução livre - como a feitura de geleia de manga com sua mãe moldou seus verões úmidos em
Ela conta, em um outro texto, como demorou a tomar coragem de escrever sobre isto após a morte da mãe, porque não tinha anotado a receita.
No fim, o texto ganhou vários prêmios e o reconhecimento da beleza íntima de falar sobre a rotina, as pessoas que amamos e gestos que se repetem entre gerações. Um lembrete sempre carinhoso: faça.
Ela também publicou uma versão própria de chutney de mangas, que eu deixo aqui.
Você conhece o podcast Bobagens Imperdíveis, da Aline Valek? Tem um episódio ótimo sobre a manga :)