Foi ela mesma quem sugeriu. Escreve sobre as coisas que você não cozinha. Ela sabe muito bem o motivo da minha recusa. Você, estimado comensal do Conchas, no meu lugar, adotaria a mesma postura, eu aposto. Vamos a lista:
Arroz doce com canela. Grãos normais, muito leite, de vaca mesmo. Açúcar, nada de leite condensado. E um pouquinho de sal para realçar a doçura. Precisa ser mexido com colher de pau, sob risco de desandar, e a canela só pode aparecer no final, na hora de comer.
A crosta dourada no fundo da panela é um misto de charme e impaciência; gosta de raspá-las ao final, e desafia o tempo de cozimento na base do fogo alto, altíssimo, mexendo muito, fazendo e pensando tantas outras coisas ao mesmo tempo. Agitada, energética, solar. Essa é minha mãe, e tudo que ela faz parece receber essa força.
Nos anos 1990, ela tinha uma camiseta onde lia-se bordado Arroz doce com canela, e gosto de pensar que era, também, uma referência à sua pele leitosa e chamuscada de sardas que, juro, possuem cheiro e textura próprios.
Pipoca caramelizada. Não é como aquelas coloridas, cujo aroma é enlouquecedor, que encontramos em parques e feiras. É muito, muito melhor. O segredo está na calda, feita em ponto de bala mole, derramada na derradeira hora em que o último grão de milho estoura.
Esta versão de pipoca doce é servida em grandes assadeiras metálicas, em quantidades absurdas e que são devoradas em breves instantes.
Ela é, inclusive, uma das grandes responsáveis pelo sumiço, e não fique esperto não para ver o que acontece.
Curau de milho. O sabor mais puro, quase uma revelação, um eureka na ponta da língua. Milho verde, de preferência no meio do ano.
Ralado e batido com leite gordo e açúcar e remexido na panela até engrossar. Para comer quente, pelando, sem medo de dor de barriga.
Feijoada. A jóia da coroa. A régua que eu uso para medir todas as outras feijoadas via afora. Começa na véspera, demanda pelo menos um quilo de cebolas e umas três cabeças de alho. Supreendentemente, não leva louro.
É perfeita, rende caldinho de entrada, molho de pimenta, é servida com arroz, laranja, couve e farofa e, em sua glória única, já foi congelada e contrabandeada em voos para alguns estados da federação.
Eu poderia continuar, e eu garanto que a lista era muito mais extensa, diminuiu ao longo dos anos e hoje meu esforço é de preservação. Sim, preservação.
Eu não devia ter oito anos completos quando inventei de subir em um tamborete, misturar o conteúdo em pó de uma caixinha de bolo pronto com ovos, leite e manteiga. Tomei gosto pela brincadeira, achei francamente mágico a transformação da massa viscosa em nuvem perfumada.
Passei a brincar cada vez mais de enfeitar o ovo frito com rodelas de cebolinha e essas pequenas firulas. Pedia para aprender e, cada vez que me passava uma receita, minha mãe, com o tempo, ia deixando de prepará-la, e me colocava na tarefa. Agora você consegue fazer sozinha. Você faz mais rápido, está até melhor.
Eu demorei muito - anos, mudanças, fomes - para entender que não gostaria de aprender tudo. Que eu não queria fazer do meu jeito, que não funcionava fazer melhor, ou servir mais adornado. Saber como é feito não é a mesma coisa de saber fazer. A credencial, neste caso, faz diferença, toda a diferença do mundo.
Eu preciso que a comida da minha mãe seja exatamente isso: a comida dela. Sem invencionice, sem precisar pensar, elaborar, entender. Uma comida que é sobretudo familiar, límpida em seus temperos, intacta em seu modo de fazer e servir, honesta em seu desejo de nutrir e cuidar.
Minha mãe desenrola muita coisa entre forno e fogão, mas jamais fez morada na cozinha, e só pensa em comida na hora da fome. Como para viver, e não vivo para comer, resumiu, mais de uma vez, numa postura prática e estóica, com sua voz de contar histórias e dar notícias.
Sua figura combina muito mais com unhas feitas, figurino alinhado, maquiagem impecável. Não suporta o cheiro de cebola refogado pairando ao redor dos cabelos de cobre, muito menos do alho impregnado nos dedos.
Não faz questão de facas afiadas, não bebe café em hipótese alguma e acha suspeito demais essa mania de comer coisas como peixe cru, cogumelos e ostras. Não se impressiona com malabarismos de técnica gastronômicas, mas é facilmente rendida por um macarrão com molho de tomates. Somos, afinal, uma família carboafetiva.
E, se demorei para me dar conta de que quanto mais eu fazia uma receita menos eu poderia pedir que ela fizesse, esperei para confirmar minha hipótese antes de revelar minha estratégia.
Perceba: a questão não é apenas cozinhar, mas servir para ela. Então, em caso de distância e saudade, está liberado tentar, mesmo sabendo que os resultados não serão o esperado. É hoje minha única recusa na hora de cozinhar, e uma espécie de homenagem, um reconhecimento : Se eu fizer, a mamãe nunca mais vai fazer.
E foi assim que nunca executei as receitas lá de cima, e mais uma meia dúzia que convém manter no mistério dos cadernos amarelados, cobertos com a letra indefectível dela, com is bem pingados e elês cortados.
Tenho ensaiado pedir para que ela faça a Surpresa de Banana, uma sobremesa infinitamente mais honesta e saborosa que a banoffee. Quem sabe no almoço que teremos fora da data marcada, para comemorar seu retorno das férias, sua luz e sua juba dourada.
Nhooom ! Não tinha lido essa ainda, achei o puro amor doce e salgado ! s2s2s2