Hoje é domingo, dia das mães no Brasil e pode ser uma data feliz, melancólica, reflexiva, alegre, ambígua. Para a data, ofereço um conto no lugar de crônica, sei que vocês vão deixar passar :)
Olívia
Não tinha fome, o que era raro. E, nos últimos dias, ela se levantava e ia dormir desejando…azeitonas. Gordas, pungentes e salgadas azeitonas.
Na primeira vez, comeu um pote todo, sozinha, sentada no tamborete de madeira, contemplando o tempo passar, a salmoura escorrendo pelos braços, temperando os cotovelos. A cabeça era um fumacê só, defumando pensamentos, queimando a linha de raciocínio antes que pudesse pensar, pronto, acabou-se as azeitonas.
Não estranhou tanto, essa vontade específica podia muito bem ser saudade, ele estava longe, talvez sempre estivesse.
No outro dia, uma quarta-feira, ela foi atravessada pelo mesmo desejo de roer azeitonas, e assim o fez, feliz com a impunidade do julgamento por aquela escolha para o jantar, uma cortesia da solidão.
Desta vez, voltou caminhando do mercado, reparando nas árvores que começavam a perder suas folhas, nos espinhos desengonçados das paineiras-brancas, as barrigudas. Era água que esses troncos acumulavam? Ou será que era alguma semente interna, uma promessa de nova vida, será?
Seguiu caminho, roendo e remoendo, botando fora os caroços, tentando lembrar o que precisava fazer, sem conseguir no entanto fixar-se numa única ideia.
Comeu quase tudo, chegou em casa e deixou um dedo de nada de conserva. No pote,que ficou em cima da pia, poucas azeitonas boiavam no líquido turvo.
Passou os olhos pelo apartamento; queria limpar as coisas pelo caminho, ele havia de chegar no fim da semana, era preciso arrumar, perfumar, polir. Mas não se sentiu disposta, definitivamente não estava. Uma sonolência morna encheu-lhe a cabeça, foi o tempo de encher um copo d'água e se deitar, resignada.
A noite foi cortada por sonhos inquietos com tudo misturado; a tia morta de repente ali, viva e feliz, agradecida de alguma forma. A melhor amiga da infância, uma menina muda de cabelos cor de fogo, de repente falava, mais ainda, gritava o próprio nome para ela. E, para fechar o cortejo, a mãe dela, contando uma longa e intrincada história que ela não entendia, lembrando da juventude na Bahia e recomendando cravo e canela.
Despertou de súbito, encharcada, com sede. Mas foi dar um gole e tudo veio à tona: uma náusea de quem está, à contragosto, em alto mar. O rebuliço das águas de dentro, e finalmente o vômito verde e ocre das azeitonas.
Atravessou o curto espaço entre o quarto e a cozinha, buscando, com os olhos, o pote de azeitonas, que, agora, haviam mudado de cor, e não mais cintilavam verdes, mas pulsava em uma cor entre o roxo profundo e a escuridão.
E então, ela soube.
Tudo ia mudar, pensou, entre o espanto e o medo, se afastando lentamente, buscando o banheiro. Limpou os lábios com as costas da mão e se olhou no espelho. E não se reconheceu. Ali, do outro lado, estava a mãe de alguém, que ela ainda não conhecia, mas que, com certeza, se chamava Olívia.
Cate por aí
Os links de hoje mostram outros olhares possíveis sobre a maternidade:
Para ouvir
Não sou exatamente mega fã de podcasts, os programas de rádio repaginados que tiveram novas ondas de produção no contexto de aplicativos de streaming de áudio.
Mas, desde 2020 acompanho o Picolé de Limão, um quadro do canal Não Inviabilize, comandado por Déia Freitas.
São histórias anônimas de ouvintes, que fazem rir de raiva e, principalmente, vergonha alheia.Mas que são de algum modo educativas para te ajudar a identificar situações que são cilada. Nesses anos a repercussão do canal cresceu, a comunidade é muito ativa e são dezenas de histórias que, hoje, já podem até ser divididas em categorias, e eu separei essa playlist com os episódios de Maternidade/ Mãe Cansada.
Para assistir
Por muito tempo, o cinema se limitou a narrar histórias de mães em uma polarização entre dois arquétipos clássicos: uma mãe santa, estátua da virgem Maria sem bico de peito, que tudo abdica e sacrifica pela prole.
Ou é a mãe Medéia, megera, que não liga para os filhos. Felizmente, parece que entramos num outro momento, onde mães podem ( e devem) ser retratadas com mais nuances, ambiguidades e humanidade. Então, segue alguns exemplos:
O filme A filha perdida, adaptado do livro homônimo de Elena Ferrante.
O filme Mães Paralelas, do Almodóvar, que tenta contar duas histórias em uma, se perde, mas tem cores sempre lindíssimas, uma cozinha que queria pra mim e outras idiossincrasias do diretor.
Por fim, recomendo também a série mexicana Mãe só tem duas, que também explora a temática de bebês trocados na maternidade e como a relação se desenvolve entre essas mulheres.
Até a próxima vez,
Gostou? Quer sugerir alguma coisa, mandar recado, pedir receita? Me escreve :)