Bem vindos ao Conchas, esse restaurante imaginário no fim da galáxia. Vamos almoçar? Hoje tem arroz!
Foi logo a Julia, irmã do meio, que tem pouca ou nenhuma intimidade com as panelas, quem reparou.
“Esse arroz tá com gosto de arroz da Mariana.”
Grão longo, nunca parboilizado e nem integral. Refogado no azeite - cebola, alho e sal - e duas medidas de água para uma de grão. Fogo alto, depois médio, alto de novo. Uma única folha de louro. Rapa.
Meu jeitinho. Quando dá. Mas nem sempre. Porém quase sempre, visto que esse modo de fazer foi reconhecido pela Julia. A versão da outra irmã, Gabi, é diferente. O arroz da minha mãe também fala por si só, feito rápido, prático, o arroz cozinhando e ela já no banho, pronta para tirar de si o cheiro de cozinheira, para poder comer perfumada como rainha.
O das nossas avós - vó Rosita baiana que, se pudesse, colocava até pimenta no branquinho. E a vó Iracema que, alheia às ordens da cozinha, se infiltrava no preparo da Rosa Mônica, regando serelepe a panela já na fervura, apenas para causar o caos em forma de papa.
O arroz das nossas tias, cada uma casada com uma categoria diferente de homem, vivendo sob a influência nem sempre sutil das sogras. O fogo, os primos, os domingos, na roça ou na cidade, no Brasil ou no estrangeiro, em qualquer parte, com a mesa cheia ou com os pratos vazios, marcando lugares e ausências, travessias e saudades.
Família é um prato difícil de preparar.
Suspeito que, ainda que fossem outros tipos de arroz - basmati, gohan, arborio, selvagem, cateto - ainda que fosse o mesmo, e que nos fosse dado a mesma quantidade e variedade de ingredientes e o mesmo tempo e a mesma receita. Ainda assim, suspeito, cada panelinha acabaria oferecendo um arroz com cheiro, gosto e textura distintos.
É típico do amor temperar tudo a seu jeito, num tempo próprio, num ritmo deslocado. E o amor em família, é prato difícil de preparar, como escreve Francisco de Azevedo em seu best seller O Arroz de Palma.
Ganhei um exemplar deste livro faz uns anos, presente de uma pessoa muito especial, a quem sempre fui grata por ter se permitido inventar a própria família. Talvez até mesmo por isso, reconheci no gesto essa sabedoria de mãe, filha e irmã. Trindade. As três faces da lua, os vinte e oito dias das mulheres.
“O Arroz de Palma acontece em 2008, quando Antonio, o narrador, já está com 88 anos e prepara um grande almoço para comemorar os cem anos do casamento de seus pais.
Os irmãos, já octogenários como ele, e todos os seus descendentes comparecem à celebração. O enredo ocorre ao personagem em forma de lembranças isoladas. O arroz que, em clima de realismo fantástico, serve de fio condutor, é bastante simbólico. A trama tem início no dia 11 de julho de 1908, em Viana do Castelo, Norte de Portugal, no casamento de José Custódio e Maria Romana. Terminada a cerimônia, o arroz que desaba sobre os noivos é torrencial, chuva branca que não para.
O cortejo segue em festa pelo vilarejo, mas a romântica Palma permanece ali, feliz com todo aquele arroz espalhado pelo adro da igreja. Muito pobre, decide com entusiasmo que aquele é o seu presente de casamento para o irmão e a cunhada. No cartão, escreve:
Este arroz – plantado na terra, caído do céu como o maná do deserto e colhido da pedra – é símbolo de fertilidade e eterno amor. Esta é a minha benção. Palma.
Infelizmente, o arroz, dado com tanto amor, resulta na primeira briga do casal. A partir daí, por quatro gerações, todas as disputas, os conflitos, os dramas e as alegrias da família giram em torno do arroz.”
Tenho pensado muito nessa história de amor, de família, de imigração. Tenho pensado muito em Antonio, esse narrador que é um cozinheiro próximo dos noventa anos, nove décadas, filhos, netos, bisnetos.
Tenho olhado para a família, naquela que é de fato, e não nas bizzarices que nos querem impor. Família é amor. É refúgio. É desafio. É kharma, mas também pode ser dharma. Embate e caminho.
Família é o microcosmos da vida que vale a pena: em coletividade, em cooperação, em comunhão. Então é natural que seja também o primeiro palco das decepções, da quebra de expectativas e manifestação de ilusões, lugar de paz mas também de guerra.
Mas em toda e qualquer guerra - principalmente as batalhas que travamos internamente - existe a chance do armistício.
Armistício é um acordo formal, segundo o qual, partes envolvidas em conflito armado concordam em parar de lutar. Não é necessariamente o fim da guerra, uma vez que pode ser apenas um cessar-fogo enquanto se tenta realizar um tratado de paz.
Na família, o armistício acontece na mesa.
Não importa quem começou, o castigo no quarto, o celular confiscado, a internet com outra senha, a voz que subiu, a paciência que se acabou, o chororô. Na hora de comer, todo mundo se limpa como pode, senta-se na mesa, os lugares marcados, também esse um acordo não verbal, mas seguido à risca no café, no almoço, no jantar.
E o arroz, seja no ocidente ou no oriente, na mesa de mármore ou de fórmica, como complemento ou prato principal, o arroz é bandeira branca.
Capaz de unir - juntos venceremos - pode, inclusive, ser sobremesa, como é o arroz doce da minha mãe, salpicado de canela como ela, cujas sardas cor de ferrugem são braseiros na minha memória de criança acelerada que ficava pouco no colo.
Arroz soltinho. Ou grudado. Fazendo casquinha na frigideira quente. Com ovo de gema mole escorrendo e tomate picadinho, um fio de azeite, sal, pimenta.
É arroz casado com seu amor maior, o feijão, cozido no dia, novo, ainda durinho, caldo grosso e cheiroso e bom. Arroz com feijoada, com peixe frito e vinagrete e farofa. Arroz feito com brócolis, radiativo de tão verdinho, perfeito com um bacalhau e batatas douradas.
Família é prato difícil de preparar. É um que não come coentro, que faz cara feia, que finge golfar. É outra que odeia pequi, uma que adora, o moço que põe pimenta em tudo, uma falta de consenso. Cebolinha sim, salsinha não, cominho só se for para fechar o tempo. Uma parte é sem carne, a outra sem queijo, esse lado aqui é sem nada de manteiga.
É implicância com a louça caramelo de Duralex impossível de destruir, é desespero com riso nervoso diante das facas sempre por afiar. É desatenção com as taças, que reponho como se fossem pencas de alho, constantemente desdentadas, lascadas, brindadas em si. Mazel Tov!
Na mesa, as brigas ainda ressoam, todo mundo sentido, mas, também, faminto.Mas dali a pouco, o silêncio do gelo começa a rachar. Mastiga, mastiga, são olhos que se encontram, é risaiada que começa mansa e vai crescendo. É doce, bolo e balinha, é café passado a qualquer hora, pão de queijo assando. São cotovelos que se roçam, sorrisos que se abrem em reconhecimento de outras bocas, em outros tempos, que cozinharam o mesmo arroz, mas de outros jeitos.
“Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema – principalmente no Natal e no Ano Novo.
Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir.
Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e aquele fastio.
Mas a vida – azeitona verde no palito – sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida.”