
Eu não ia me manifestar, abrir as portas deste restaurante imaginário, nada disso. Sabe como é, final de feriado, peguei a estrada que fiz tantas e tantas vezes, que traz de volta aqueles que lavaram as almas nas cachoeiras da Chapada dos Veadeiros. Meu quintal, que sorte.
Mas a cronista em mim não resiste. Nem a brasiliense. Nem a garota que ama-e-odeia fazer aniversários. São três anos desde que escrevi e enviei minha primeira edição e a realidade segue dando truco na ficção. Mas eu peço para descer, meio pau, dia sim, dia também.
Na estrada de volta, pela reta infinita da 118-GO, minha amiga, que é designer, observou bem: as nuvens pareciam carimbadas. “Hoje Deus estava com preguiça e copiou e colou todas", disse, despreocupada como só é possível para aqueles que jamais foram batizados em uma tigela de mármore por um padre. "É que ele está ocupado, a casa cheia sabe, o filho mal acabou de ressuscitar e o Chiquinho acabou de subir", respondi.
O céu tão perto, como aqui no Planalto Central, nos aproxima do Mistério, e nos faz assim, meio hereges, meio místicos, amigos das nuvens, odiosos da soja, saudosos do mar, devotos da chuva.
Na última parada, na pamonharia Vó Belmira, encaramos a fila para fora. Escuto a conversa de um trio de paulistas, dois homens e uma mulher, atrás de nós. “Será que quem é daqui para mesmo com fila?”, eu não me aguento, me viro e respondo que sim, claro, o empadão goiano, de capa crocante, recheio cremoso e borbulhante vale a espera, vale os quilômetros todos de trilha, ora, vale a viagem inteira se bobear.
E, veja bem, fiz a ressalva: os melhores estão mesmo para o outro lado do estado, para as bandas de Pirenópolis e Goiás Velho, onde você pode pedir com guariroba, o palmito amarguinho, e onde eles tem a cortesia de colocar uma azeitona inteira com caroço. Comemos no silêncio dos famintos, dois empadões perfeitos, recém saídos do forno, a vantagem do grande movimento é esse, tem sempre alguma coisa pronta, fresca, fumegante.
E eu me lembrei dos meus quinze anos, quando, na gincana do colégio, dentre mil e uma competições entre as numerosas turmas de ensino médio, representei meus colegas em duas frentes: na competição de escrita e na de cozinha. Ganhei as duas, com uma diferença: não faço ideia sobre o que escrevi, mas cozinhei dentro do tema — comidas típicas dos estados brasileiros — e preparei justamente um empadão goiano.
É compreensível que tanto seja emprestado da cultura goiana. Riscar um quadradinho no chão vermelho foi coisa de gente que sonha. E que, de alguma forma, consegue contagiar os outros nesse sonho.
É que esse sonho específico veio muito antes: aprendemos na escola que foi o santo italiano São João Bosco que, em 1883, teria sonhado que visitava a América do Sul, continente que nunca chegou a pisar. Na visão, ele descreve um lugar, com riqueza dos detalhar até a geolocalização:
“Entre os graus 15 e 20 havia uma enseada bastante longa e bastante larga, que partia de um ponto onde se formava um lago. Disse então uma voz repetidamente: -Quando se vierem a escavar as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a terra prometida, de onde jorrará leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.”
Setenta e sete anos depois, era inaugurada no Planalto Central brasileiro a cidade de Brasília, exatamente dentro do intervalo de coordenadas geográficas mencionado na visão de Dom Bosco e emoldurada pelo Lago Paranoá.
Brasília existe faz 65 anos. É difícil ser uma cidade quando se tem idade de gente, de ser humano. Quando a cidade tinha apenas dez anos, uma certa escritora ucraniana que cresceu em Recife veio visitar a cidade, para deixar seus filhos com o pai, um diplomata que tinha voltado de missão e servia no prédio ainda novo do Palácio do Itamaraty. E ela escreveu assim:
Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia, veem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado.
Não sei se a cidade já tem seu homem; me sinto, no entanto, a mulher de Brasília. Uma mulher, em Brasília. Subo e desço seus eixos; existo para além da política. Ouso pertencer e insisto em dar bom dia, plantar gentileza no solo árido das desconfianças típicas dos lugares abarrotados de forasteiros.
Me espanto com o silêncio das madrugadas insones, com a preservação artificial do branco dos prédios tombados, e danço muito literalmente em frente ao grande memorial de JK, o mineiro que bancou essa obra faraônica e reuniu gente do país inteiro por obrigação, por curiosidade ou por ousadia de tentar a vida em uma cidade novinha em folha.
E eu, que costumo me esquecer do quanto meu corpo se sente em segurança e em paz diante da perspectiva modular dos limites do Plano Piloto me recordo, logo hoje. É meu pai, outro mineiro, que toca o interfone, e anuncia minha herança de hoje: mel e leite em forma de queijo frescal. Penso no clérico italiano , corto fatias grossas e albinas, derramo o líquido dourado e coloco para tocar a música de Alceu Valença na voz de Gozagão, grata pelos sonhos e pelos clichês dos feriados, das crônicas e dessa minha cidadela inventada.
Essa crônica pegou minha saudade pela mão e tirou pra dançar. Morei dois anos em Brasília e o verso que diz que nesse país lugar melhor não há virou meu mantra. Que saudade de lavar a alma na Chapada dos Veadeiros, sentar na grama no choro no eixo, pedalar nas 400 da Asa Norte, ir à feira do MST no sábado de manhã, ver flor de mandacaru e saber que é um sinal que a chuva chega no cerrado também... Brasília tem mesmo uma mística, um encanto. Quem sabe um dia eu volto ❤️
Cultura goiana is the best!