Um banquete à brasileira
Menu, posse, Brasília e a alegria de poder comentar comida e bebida
Feliz ano novo! Estamos bem? Hoje o Conchas, seu restaurante ficcional favorito, abre as portas em caráter extraordinário.
Domingo não abrimos, porque a dona (eu mesma, favor reclamar à gerência, mas, por gentileza, não reclame, é verão, a terra é redonda, tem esse clima de esperança no ar, venha ver o por do sol…) do restaurante deu folga pra todo mundo e foi viver um momento histórico no gramado central da Esplanada dos Ministérios, nesta cidade que se abre para o amanhã.
Queria ter feito uma retrospectiva, ensaiei listas, coisas assim, mas não deu. Devia ser proibido isso de Natal e Ano Novo no fim de semana, acaba com aquela cadência gostosa de não saber que dia é, de não ter hora para acordar, beber, viver, se molhar sem medo, com recesso dos justos, que não veio.
Mas foi como tinha que ser, um encerramento tenso de um ano cheio de acontecimentos daqueles que rendem manchetes.De repente é como eu ouvi nas ruas: não se trata apenas de uma virada de ano, mas de um certo exorcismo nacional. Faz sentido.
Alguns aperitivos sobre os últimos dias em Brasília:
Almoçando no Careca da 407 Norte, pesquei conversas nas mesas vizinhas, apinhadas de…turistas. Alguém perguntou onde ficava a “Esse quê ésse 308” e se lá tinha uma igreja. Eu conto, ou vocês? Se estivesse com mais tempo e sem timidez, eu mesma os levava, batia os retratos no fundo de azulejos azulados de Athos Bulcão.
Ri boba dessa conversa, me alegrei olhando aqueles turistas legítimos em Brasília! É fácil se esquecer que se vive em um tipo de cartão postal quando ele é tão estigmatizado por tanto tempo. É uma coisa boa poder brincar novamente com as siglas das quadras como crianças tateando a palavra, o som, as crepitantes consoantes. Que delícia!
Um grupo de jovens de Curitiba se debruçava no balcão da clássica Dom Bosco (eu não chamo de pizzaria, mas, se quiser, fique à vontade!) motivados por um vídeo no TikTok que classificou a dupla e o mate como comida típica dessa Capital Federal.
Essa cena me lembrou da primeiríssima edição desta newsletter, que faz aniversário no mesmo dia da Capital Federal. Pensei também no conselho sábio que o amigo, mestre e vizinho
me deu da última vez que, por fome e saudosismo, quis comer Dom Bosco: vá na unidade da 308 sul onde eles deixam as redondas por mais tempo no forno. Se ele falou, já sabem né?No domingo, cheguei cedo. Do lado de fora do gramado central, as barracas de comida exibiam espetinhos, pastéis fritos em formato da letra L, pipocas de sal e de doce, mas também arepas venezuelanas, do El Arepazo, que no geral oferece este preparo tão latino-americano aos domingos, no Eixão, na altura da 212 Norte.
Vários pontos onde a chapa chiava e era anunciado o inigualável: almoço de jantinha. Sério, já pode fazer petição para tornar a jantinha um patrimônio imaterial? Pois deveria poder. Espetinho, arroz, mandioca cozida, vinagrete e farofa, não tem pra ninguém. Deixo esse post da colega Rebeca Oliveira, que é uma declaração de amor a este prato:
O Sol saiu, e as nuvens pareciam algodão doce, mas, para aplacar o calor, escolhi um picolé. De morango.
Uma hora sentei, exausta e calorenta, ao lado de tantos, para acompanhar as assinaturas do termo de posse pelos telões. Um moço do meu lado, sem cerimônia, tirou um pote de iogurte, lambeu a lâmina prateada. Também era de morango.
Do lado de dentro da área demarcada do canteiro central, uma grande estrutura coberta, mesas e cadeiras, preparação para um banquete amplo. E nas bancas: mais pastel(mas estes, tradicionais, retangulares), e também hamburguer, cachorro quente, uma coisa meio festa infantil dos anos 1990; todo mundo meio fantasiado com o tema do evento, balões que escapavam, um som abafado. Crianças em carrinhos, no colo, no sling, correndo, dando cambalhota, idosos cochilando à céu aberto, furdunço. Não vi coxinhas. Mas, também, nem pão com mortadela.O Brasil, ah, o Brasil!
Mas, e aqui eu achei de fato surpreendente, várias barracas ofereciam: quitutes veganos, comidas regionais - vi gente mandando um tacacá na cuia no Sol de duas da tarde, isso é manha. E invejei um baião de dois cheiroso que passou nos braços de uma moça que teve mais disposição que eu para enfrentar filas. Tive dó de um açaí todo derretido e melecado. Mancha de açaí sai? De dendê, nunca.
Ipês também florescem fora de época: com as copas cheias de folhas, as árvores, que são verdadeira atração na temporada da seca, se tornarem poleiro, quiça camarote dos apoiadores mais aventureiros que esperavam o desfile em carro aberto.
Um desses empoleirados balançava uma flâmula branca, com um círculo vermelho e três bolas vermelhas dentro. É ela, a bandeira da paz! “Onde há paz, há cultura, onde há cultura, há paz!”
Menu
Passada a subida da rampa e o discurso, fui-me embora, rumo ao almojanta, refeição implacável dos domingos. Em casa, recebi de diferentes fontes a mesma foto: o cardápio do jantar presidencial.
Eu adoro menus. Antigos, novos, inusitados, sissudos.Guardo alguns de restaurantes e cafés extintos e me preocupo francamente com a cultura de apontar o celular para saber o que pedir, sob risco de perdermos informações e, porque não, documentos históricos. Mas deixo para os historiadores, os futuros argonautas navegando por pixels e bits essa árdua missão, e me volto humildemente para comentar o menu acima.
O que você achou do cardápio? Ora, fiquei com fome só de ler, você não?
Reconheci muita coisa ali, inclusive as grandes mulheres chefs de cozinha. Entendi o esforço por incluir elementos culturais de diferentes regiões de um país continental e complexo. Gostei e compartilho aqui a análise da Tati Rotolo e te convido a ler os comentários de gente muito boa na postagem.
Assim como Tati, senti, sim, falta da cachaça. Foi a minha xará, a barista, bartender e cientista política Mari Mesquita que cantou a bola: a ausência da água que passarinho não bebe deve ser para distanciar a imagem de um presidente cachaceiro. Uma pena.A cachaça é nosso destilado nacional. Tanto assim que, em outubro de 2003, a caipirinha foi decretada bebida típica brasileira.
Se você ainda torce o nariz eu convido a conhecer o trabalho dos queridos Bruno, Aline e Anna do Viva Cachaça. Eles dão verdadeiras aulas sobre a bebida, sua história e importância nacional. Destaco também o importante trabalho do Mapa da Cachaça, projeto referência na disseminação do conhecimento.
E para quem ama números, vou deixar alguns aqui, diretamente do Anuário da Cachaça 2021:
1,3 bilhão de Cachaça é produzida anualmente no Brasil, com 70% da produção de Cachaça industrial e de coluna e 30% de Cachaça de alambique de cobre.
No Brasil temos cerca de 6.795 marcas de Cachaça registradas no INPI.
A cachaça foi exportada para 67 países, por mais de 50 empresas exportadoras, gerando receita de US$ 13,17 milhões em 2021.
Também fez falta ver brilhar os vinhos brasileiros (que, aliás, foram servidos embora não estivessem previstos). Foi a Keli Bergamo que primeiro postou as imagens dos três rótulos servidos: Matiz Alvarinho 2020 da vinícola Hermann, o espumante Arte Brut e o tinto Cabernet Sauvignon 2018, ambos da Casa Valduga. A jornalista Suzana Barelli, descobriu e explica na coluna dela porque estes vinhos foram servidos apesar de não estarem listados.
A pergunta aqui é: se temos produção de vinho em tantos estados (Goiás, Minas Gerais, Pernambuco e até no Distrito Federal para citar alguns) porque eles não foram contemplados, assim como aconteceu com os pratos de diferentes regiões? Faço votos para que esta bebida ganhe mais destaque, reconhecimento e mercado.De toda forma, não é uma alegria poder comentar comida e bebida novamente para além do absurdo? Eu acho. Comer é sempre um ato político e, como brilhantemente colocou
, "Tudo sobre a mesa está em disputa, não só o saleiro".Além disso, quando pensamos no que estava disponível para comer no gramado da Esplanada e no que estava servido dentro do Palácio do Itamaraty - separados fisicamente por uma rua e simbolicamente por tanta História - não é justo que sejam reconhecíveis quitutes como pastel, croquete, tapioca e acarajé?
Não é o verdadeiro banquete brasileiro as comidas que podem figurar em todas as mesas? A festa não é boa quando é justamente para todos? O Carnaval, vocês sabem, está logo ali, e dá um alívio saber que colocaremos nossos blocos na rua e poderemos seguir carregando os estandartes de segurança alimentar, cultura, educação, saúde, direitos humanos e tudo que faz sentido, que faz sentir.
delícia o cardápio de hoje. honrado com a menção, hehe
Genial esse edição, um verdadeiro banquete a democracia!