Com uma pitada de sorte, o doce é o primeiro sabor que conhecemos, bem na ponta da língua.
Ali é onde se enrolam também as palavras precisas, aquelas que sentimos falta, e que, se saíssem quando delas precisamos desesperadamente, poderiam ser ditas de forma correta, no momento exato. De forma doce.
O doce vem primeiro porque o leite é adocicado. Isso acontece porque a vilanizada lactase é um açúcar. Um hidrato de carbono, mais especificamente um dissacarídeo, que é composto por dois monossacarídeos: a glicose e a galactose.Quando eu leio (ou escrevo) galactose, penso que só pode ser uma substância enigmática, que veio de longe, de outra galáxia. Da Via Láctea.
O doce, que pode ser a melhor parte de uma refeição, chega ao final, em forma de sobremesa. Pode ser um mimo, um afago, um atalho para sentir um pouquinho de alegria, um descanso na loucura.
De tantas formas de consolar com doce, de homenagear com açúcar, de reunir as pessoas-formiguinhas, o bolo, essa instituição, talvez seja a maior e mais grandiosa delas.
"Curiosamente, as sobremesas são de certa forma a matemática da culinária.É difícil improvisar e tocar a sua própria música. É necessário seguir a partitura, com o dedo acompanhando cada linha. Execução!"
Do livro Comer é um sentimento - François Simon
Foi uma das primeiras coisas que cozinhei, ainda criança, com ajuda de adulto, subindo no tamborete de madeira para encarar a bancada cheia de possibilidades. Foi ali que encontrei uma parte minha. Ali, misturando o pó mágico da caixinha com leite, ovos e manteiga e depois assistindo de camarote com a luz do forno acesa a massa subir, perfumando a casa toda, e dourar, formando uma crosta dourada e irresistível. Bolo quente pode até fazer mal, segundo os antigos, mas é irresistível.
Eu não sei dizer com precisão quantos bolos assei na vida.Talvez cem? Talvez mais. Muito mais.
Nem sou capaz de recordar-me de todos os sabores, receitas, recheios, coberturas. Foram muitos. Para tantas ocasiões.
No aniversário das minhas irmãs, que apesar de terem nascido com anos de diferença o fizeram na mesma semana de junho, fiz bolos conjuntos, cheios de morangos da estação. Para minha mãe, leonina, elaborei com capricho bolos ensolarados de coco, pêssegos em calda, granulados dourados.
Para mim, que comemoro o ano novo particular no começo de dezembro, fiz bolo com as nozes que aparecem nos mercados na época, e também já enchi de flores e ervas frescas um bolo que precisava muito marcar o início de um período mais primaveril na minha vida.
Caramba, uma vez, até, fiz um lindo bolo de limão siciliano e frutas vermelhas e merengue tão lindo e gostoso para meu desaniversário. Muita gente mandou parabéns, tamanho o poder simbólico que um bolo com vela evoca.
Na última década, fiz os famigerados cupcakes de chocolate para colegas de trabalho, bolo de tabuleiro para festa junina, bolo de chocolate com recheio e cobertura de chocolate como declaração cafona de amor.
Pão de ló, tão gostoso, tão querido, bom sozinho, com geleia, com creme, com vinho do Porto.
Bolo de maçã e canela para confortar corações inundados pelo luto. Bolo de laranja para minha avó Iracema tomar café com a irmã, Aparecida. Bolo de limão pra Anna Elize. Bolo de aveia para a Luiza. Bolo de cenoura com cobertura de chocolate para todo mundo que precisasse dele.
Para além dos sabores, já me aventurei por firulas, enfeites, bandeirolas, todos jeitos de levar um tema adiante, de agradar para além do doce.
Uma vez fiz um bolo de limão com recheio de brigadeiro branco e cobertura de chantilly com uma intrincada aplicação de flor de arroz, que encomendei com a bandeira do Palmeiras, time do coração do vô Antero, o aniversariante daquela vez. Já coloquei cookies e cereal matinal em enfeite de bolo, corante radioativo, bebidas alcóolicas no recheio. Muitas vezes com zero técnica e muita boa vontade.
E, se eu me aventurei pela confeitaria, mesmo sendo uma cozinheira completamente errática, incapaz de seguir muito à risca as receitas, nada afeita da balança e da matemática inerente da coisa, foi por afeto.
Foi por ter crescido soprando velinhas de bolos caseiros que minha mãe fazia. Foi por associar primeiro e para sempre a ideia de bolo com partilha, com festa, com conversa, com cheiro de vela apagando e de guaraná morno e de gente que se importa com você.
Escolher ingredientes, sabores, caprichar na decoração, são todos rituais de amor, são expressões de temperança capazes de adoçar as relações.
E, mesmo quando os desastres acontecem - e não são poucas as vezes - quando o planejado fica aquém do esperado, o desenho sai torto, o merengue molengo, o corante alimentício em excesso tinge tudo, mesmo nessas ocasiões é preciso rir e relevar e acreditar na intenção genuína por trás daquele gesto.
Me acostumei a perdoar qualquer desastre gastronômico, a começar pelos meus próprios, se estivessem em formato de bolo, por entender que, nestes casos, a intenção conta muito, conta demais.
E então, na semana que passou, no rio caudaloso e poluído das notícias, a imagem de um bolo travou meus dias, surgiu em conversas, se esgueirou para a terapia. Um bolo, um símbolo, uma vela acesa, uma criança junto. Eu sei que você sabe do que eu estou falando.
Não consigo conceber como uma confeiteira, uma mulher, uma mãe, uma pessoa criativa, pode moldar, para decorar um bolo de aniversário, um revólver. Qual material moral você usa para tanto? Pasta americana.
O que se passa na cabeça de uma pessoa enquanto ela modela e pinta com corante de ouro as balas da pistola de enfeite, esse símbolo de violência incompatível em tudo com uma celebração de mais um ano de vida?
“O açúcar é doce
pros donos dos canaviais.
Pra nós ele é azedo e amargo
que nem dá gosto.”Flor-de-Nice dos Santos, boia-fria.
Prefácio do livro Açúcar Amargo - Luiz Puntel
Se for de propósito e com orgulho, das mãos da própria dona da confeitaria, é assustador. Se for, por outro lado, o cumprimento de uma ordem, mãos funcionárias e, portanto, operárias, é o triunfo do trabalho alienado.
Você molda um revólver, pinta as balas de ouro, bate o ponto e sai por aí, a pensar em outras coisas. Que coisas? Quantos vídeos elétricos embalados por músicas chiclete você precisa assistir para tirar da cabeça o trabalho do dia, um bolo em formato de caixa de pistola?
Talvez seja a rotina. Como repórter, não foram poucas as vezes que me deparei com pessoas que, mesmo exercendo atividades extremas, perigosas, esquisitas até, haviam se acostumado pela força da repetição, pela bestialidade dos dias iguais, mesmo que o igual em questão fosse tudo, menos normal. Mas não pode ser.
As mãos que moldam flor, flor, flor, se viram iguais moldando cartucho, bala, tiro? Será que entra na esteira de pedidos corriqueiros, bom, bolo de médico vai com um estetoscópio moldado por cima. No bolo de veterinário é bom colocar um cachorro e um gatinho, no do dentista, porque não, uma boca escancarada cheia de dentes.
Vale dispor da criatividade para atender aos pedidos mais específicos. Mesmo os bolos irreverentes que celebram divórcios, ou os bentô cakes, tão na moda, se equilibram na barreira do humor ácido e da autodepreciação, reproduzindo memes, piadas internas, jargões familiares. O humor e a proximidade com o aniversariante justificam algumas escolhas estéticas questionáveis.
Mas e uma arma, como se justifica? A violência tirada do contexto que usualmente nos acostumamos a relegá-la é sempre mais chocante, mais cruel, bizarra.
E, no entanto, mesmo essa expressão terrível, um bolo com uma pistola em cima, encontra quem o encomende, quem o asse e molde e entregue, quem comemore, quem fotografe e poste e quem aplaude.
Folheio mentalmente os álbuns de retrato, me deparo com bolos da infância. Urso, estrelinhas, a Minnie, a Moranguinho, a Mônica. Essa criança da foto, quando crescer, buscará essa imagem? Será capaz de encarar com naturalidade, orgulho, reconhecimento? Eu torço para que não.
Porque isso seria admitir que a barbárie que nos ronda venceu, e que a violência é a norma, e que os tiranos venceram e comem bolos à meia noite da civilização. Se esse bolo entrar para a História, que seja nas páginas que lhe cabem: o bolo dos doidos e, principalmente, dos derrotados.
a fome que me deu este texto. juro qe senti na ponta da lingua todos os sabores, as nozes, o pêssego com coco. eu amo bolo, como comida e como símbolo de partilha, celebração, afeto. fazer um bolo para mim é como meditar, tenho que separar um tempo e espaço só pra isso. e não me venha com muita lambuzeira de não sei quantos recheios e glacês. só o bolo, perfeito em si mesmo e uma xícara de café. não que eu não ame inventar uma moda: café coado na receita de chocolate, canela e noz moscada no de cenoura, pedacinhos de goiabada no de fubá. esse texto tem a delicadeza de um bolo que assou no tempo certo e cresceu moreninho no forno, perfumando a casa com um cheiro bem doce.
tô contigo, Mariana. que seja lembrado como o bolo dos derrotados!