Essa semana, o pai de um amigo querido partiu, depois de um ano de luta contra o câncer. Pensei em tantas palavras, achei tudo insuficiente, a distância física que nos separa não ajuda. A morte traz a urgência dos gestos
Se ao menos eu pudesse assar um bolo de maçã, chegar com um bule de chá de cidreira. Ficar ali, em silêncio, ao lado, abraçar. Gravei as palavras que consegui, enviei, sei que continua sendo pouco.
O luto é uma parte da vida, mas não há receita, nem reação padrão, e talvez nem um fim definitivo, apenas uma transmutação possível.
Em 2017, meu avô Antero faleceu após meses de adoecimento. Peguei um voo para seu enterro, e, no avião, na volta, rascunhei o texto abaixo, um dos que mais gosto.
Naquele ano, me afundei em conhecer as tradições mexicanas, me vesti para o Dia dos Mortos, dancei sozinha uma música de sertanejo antiga na cozinha num dia cinza, amassei muitas vezes pão de queijo numa gamela de madeira. E, quando foi época de jabuticabas, chorei embaixo do pé, cuspindo longe as cascas negras. No próximo dia 9 de julho, meu avô completaria 88 anos. Nunca mais cozinhei frango ensopado com açafrão sem pensar nele. Nem cortei couve ou descasquei laranja sem que fossem as mãos dele a guiarem as minhas.
O luto, com o devido tempo, pode se transformar em uma espécie de saudade, uma deferência. Pode virar uma homenagem ao se fazer o que a pessoa que partiu gostava, cozinhar o que ela mais se alegrava em comer, buscar imitar os gestos na tentativa de preservar a memória, de honrar os laços, de ser, ainda, elo entre quem foi e quem ainda virá.
Escrever e cozinhar tem sido formas recorrentes para mim de lidar com o luto, com a perda, com as coisas que não posso controlar. Ter aprendido as receitas das pessoas que se foram é uma forma de revisitar momentos e, por isso, sou muito grata. Deixo o texto abaixo como um carinho para quem também teve que se despedir.
Almoço de família
Para meu avô Antero
Estou ali como se nunca houvesse estado em nenhum outro lugar. Naquele apartamento quase térreo com três donos. As paredes ainda pintadas de azul calcinha. Das janelas, emana uma claridade onírica que não ouso desvendar.
A mesa esta devidamente posta: pratos brancos com miúdas flores amarelas, de quem é mesmo essa louça? Copos e talheres e guardanapos dividem espaço com uma salada de alfaces bem tosadas, rodelas transparentes de tomate Carmen e cebola ardida.
Olho ao redor. Irmãs e primas dividem os sofás, meninas de tudo. A televisão de tubos sintoniza uma partida de futebol. O Palestra Itália será o grande campeão do dia; essa certeza me invade ao mesmo tempo em que o ar é preenchido por aromas inconfundíveis; frango, açafrão e cebolinha, e arroz cozido com punhados de alho e molho de tomate e ovos cozidos.
Avanço para a cozinha mas paro no batente, hipnotizada: vovó remexe uma colher de pau antiquíssima, decerto entalhada na casca da primeira árvore derrubada pelos primeiros portugueses que chegaram na Bahia de todos os santos, terra dela. Vovô esta curvado na bancada, concentrado. Enrola frondosas folhas de couve em um charuto bem acabado, e então começa o corte fino, hábil. Dos quartos escuto o burburinho de filhos, crescidos mas camaradas, fraternos, apesar de tudo.
Dona Rosita se vira do fogão e me enxerga parada ali.
- Branca de Neve, você veio! Me acode aqui que o almoço está atrasado.
Vovô Antero interrompe sua prática perfeita e vem até mim, me dá um cheiro no pescoço, os fios grossos do bigode roçando minha pele. Reparo que estão ruivos e não mais brancos, os cabelos tampouco. Parece forte, valente e bom, como sempre foi.
Sei o que tenho que fazer e faço: alcanço um pilão e descasco alho, coloco sal e pingo conserva de pimentas e vou macerando tudo. Resgato os ovos na água já turva, mas não tem jeito, vovó Rosita só os serve esturricados, vive assombrada pelo fantasma do medo das gemas moles que carregam doenças antigas.
Tiro o espaguete grosso do fogo e escorro na pia, o molho por misturar. Vovô já colocou a enorme frigideira para esquentar, e fios de óleo saltitam suplicantes. Ele vigia minha avó, que despeja feijão novo e fumegante na sopeira e segue para a sala. Serelepe, olhos vivos de raposa, ele me encara com cumplicidade absoluta e nenhuma culpa enquanto avança para o fogão. Aumenta o fogo na boca que abriga a panelona de arroz, sorrisinho no canto de boca, sem dar um pio.
Entrego-lhe a tábua cheia de filetes verde escuro, que ele esfrega agilmente com uma colher na superfície quente. O alho socado vai por cima para não queimar. Vovó retorna gritando para que todos se apressem, que o almoço está quase servido.
As travessas postas, a gentaiada sentada, falta o arroz.
Antero na cabeceira, inclina-se para traz e grita:
– Oh Rosita, deu rapa no arroz!?
Ela vem vindo da cozinha, unhas bem vermelhas e cabelo louro, avental bem amarrado na cintura, um pratão nas mãos, cheio de arroz chamuscado, a tal rapa, iguaria do velho.
– Oh Antero, foi você que aumentou o fogo?! — ela questiona, depositando o tesouro a frente dele, dando-lhe tapinhas no braço.
Ele sorri feliz. Comemos todos com apetite, falando alto, bebendo suco de caju adocicado e quente. A comida vai acabando e cada qual retira seu prato e some cozinha adentro, sem voltar.
Me dou conta que tenho que ir, todos temos. Me ocorre uma última ideia, uma esperança boba. Corro até a área de serviço, sabendo que vou encontrá-las. Na fruteira, laranjas pera perfeitas me aguardam, polpudas, as cascas brilhantes, cheias de promessas de caldas e bolos e compotas. Não há tempo, escolho duas e retorno a sala.
Encontro a mesa esvaziada, tudo silencioso, Vovô sentado, faca na mão, esperando. Sento-me também, oferecendo-lhe uma fruta.
– Mariana… era o nome da irmã do meu pai, Tia Lana, você sabia?
– Eu sei Vovô.
– E sabia que quando era moço eu dirigia um caminhão cheinho dessa laranjas?
– Sabia Vô.. e você tem uma corrida pra fazer agora?
A primeira tira de casca, longa e contínua, cai na mesa. O pai da minha mãe abre uma tampa cônica e me entrega a fruta.
– Dessa vez não tem passageiro não, eu vou sozinho, ele responde, olhos baixos, fixados na lâmina.
Repete os movimentos precisos, e a segunda tira se desenrola. Ele se levanta e me dá um cheiro, passa as mãos grossas no pesado molho de chaves, os bolsos tilintando de moedas. Vovô me dá outra cafungada que retribuo em abraço meio partido, e então ele sai, fechando a porta atrás de si.
Permaneço ali, chupando a laranja doce e ácida e amarga, sem ter o quê fazer.
Texto publicado originalmente no meu Medium em outubro de 2017.
Sensação de coração apertado pela saudade dos que foram mas quentinho com lembranças maravilhosas de almoços de família.
Que lindo jeito você encontrou de se despedir do seu avô. Obrigada por compartilhar ❤️🩹 Meus sentimentos estendidos a seu amigo, que perdeu o pai. Nunca é fácil saber o que fazer à distância. Um beijo!