Sejam muito bem vindos! Chegaram novos comensais na última semana, coisa boa.
Conchas é um restaurante imaginário no fim do mundo, a reserva é a assinatura e nos encontramos toda semana, aos domingos.
Pode entrar, fica à vontade, pode juntar mesa, arrastar cadeira, chamar mais gente. Não repara nas aleatoriedades, uma hora tudo se conecta.
O cardápio não é fixo, embora crônicas estejam quase sempre no menu do dia. Receitas, é raro, mas pode acontecer. Contos de ficção estão no radar e são sempre estimados.
Listas também são muito queridas por esta que vos recebe aqui, e, hoje, talvez seja um bom momento para falar delas. Meu primeiro puxadinho na internet, um blog do começo dos anos 2000 hospedado no Blogspot chamava-se Minhas Listinhas e, bom, o conteúdo depositado ali era exatamente o que o nome inspira.
Listas e listras
Listas são atraentes, especialmente aquelas que enumeram, que dizem partir em direção ao melhor de alguma coisa, que se tornam pódios de muitas- ou pouquíssimas -posições.
Na semana que passou, foi divulgada uma das listas mais conhecidas que se propõe a eleger os melhores lugares para comer em 2022.
The World's 50 Best Restaurants é uma premiação inglesa que lista, há 20 anos, os melhores restaurantes do mundo.
Assim como o prestigioso Guia Michelin surgiu do patrocínio da fabricante homônima de pneus, o World's 50 Best é oferecido por duas marcas de água, sim, água mineral, S.Pellegrino & Acqua Panna.
Para muita gente, essa premiação é considerada o Oscar da Gastronomia. E eu acho que pode sim ser uma comparação acertada, ainda mais se considerarmos as tantas vezes em que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas ignora solenemente grandes obras, lugares e acontecimentos.
Se vamos destrinchar os escolhidos, em ambos os casos, vemos a cegueira conhecida, e é urgente fazer o exercício de indagar: Onde estão as mulheres, as pessoas pretas, as minorias, os povos originários?
Listar é, por regra, fazer determinadas escolhas em detrimento de outras. Fazer uma lista é, na verdade, criar duas: o que ficou dentro, e o que ficou de fora. A segunda, eu suspeito, pode contar mais sobre quem fez a lista.
Listas são como listras, onde cada presença de uma cor é a ausência de outra, onde as lacunas entre um item e o próximo dizem muito, formam o contraste muitas vezes duro que às vezes contamina o olhar e a forma como enxergamos o mundo.
Ou isso, ou aquilo.Preto ou branco, e para as cucuias com a zona cinzenta.
Ou alta cozinha ou comida de rua. E, nesse meio de campo, perdem-se as nuances, as possibilidades intrigantes que se revelam quando assumimos a existência de um espectro de experiências.
O que excluímos, ao listar, é extremamente revelador. Corre-se sempre o risco de que algo excepcional fique de fora.
Recentemente, foi o que aconteceu com Pig, longa metragem estrelado por Nicolas Cage que, apesar de ter sido muito bem recebido pela crítica especializada, foi sumariamente ignorado pelo Oscar em 2022.
Rob (Cage) é um eremita vivendo em uma cabana nas úmidas florestas de eucalipto em Oregon, na Costa Oeste dos EUA.
Ele sai em expedições em busca de valiosas trufas pretas, o fungo preto que se desenvolve espontaneamente em condições climáticas adequadas, e que é um dos ingredientes de luxo nas cozinhas do mundo todo.
Sua única companhia é uma porca farejadora de estimação, de pelo avermelhado, com quem ele divide uma bela torta de cogumelos preparada com refino técnico impecável, o que parece incompatível com esse personagem barbudo, meio empoeirado, ensimesmado.
No entanto, é inegável o estado de graça e paz que ele parece ter alcançado ali, naquela refinada simplicidade, na comunhão com a natureza e com o animal, a atmosfera da floresta, as nesgas de Sol que se insinuam por entre as árvores, os vapores, o fogo no qual cozinha.
Tudo isso muda quando, na calada da noite, sua porca é sequestrada, e ele se vê obrigado a retornar à cidade, Portland, na qual, vamos descobrir, ele teve um passado de sucesso.
Não vou revelar o enredo, pois o elemento surpresa é grande parte da experiência de assistir este filme.
Não se deixe enganar pelo subtítulo em português, que menciona vingança, nem pelas numerosas cenas nas quais Cage aparece com a cara toda ensanguentada. Não é um típico filme de ação, nem de justiceiro, como também não é uma história usual sobre gastronomia.
Nem mesmo é um drama de uma nota só. Desconfio que seja um roteiro pensado para discutir os limites da arte, seja ela culinária ou cinematográfica, dentro de um sistema que quer colocar estrelinhas, lançar tendências, especular e fazer dinheiro em cima do talento.
Leia as listas dos melhores restaurantes. Assista a Pig. E, depois, tire suas próprias conclusões e, quem sabe, faça suas próprias listas.
Cate por aí
Esta semana, a Escola de Humanas, capitaneada pelo grande Guilherme Lobão, ofereceu gratuitamente a jornada de inverno de Gastronomia.
Acompanhei ao vivo alguns dos encontros, como a aula de Gastronomia e Mídia com a Flávia Schiochet, autora da newsletter fogo baixo. Foi ela, inclusive, que mencionou Pig em uma análise muito boa, assistam.
As aulas estão gravadas e disponíveis por tempo limitado, recomendo muito para quem deseja pensar a alimentação de maneira multidisciplinar. As discussões durante a jornada foram muito ricas, e é sempre bom trocar com pessoas interessadas pelos temas ligados à alimentação, cultura e filosofia. E, para quem deseja se aprofundar, em breve abrem as inscrições do curso Comida de Pensar, fiquem atentos!
Obrigada pela menção! Fiquei feliz que você relembrou o filme e a ideia das zonas cinzentas. Sensacional <3
Brigado, Mari, pela moral. Bela news como sempre.
Em tempo: adorei a "montagem risível". Queria ter o talento hehe