Eu poderia me mudar para uma cidade pequena, e me tornar uma garçonete. Dizer que meu nome é Stacy e que eu estou desvendando as coisas.
Esse é o começo da música Waitress song, das irmãs Klara e Johanna Söderberg. E é também a premissa do filme My blueberry nights, o primeiro filme em inglês do Wong Kar Wai, que tem um elenco cheio de estrelas e trilha sonora gostosa de ouvir.
Nesse road movie, nossa mocinha, Lizzie, interpretada pela Norah Jones, está sofrendo com um término de relacionamento e uma dor de cotovelo digna de letra de sertanejo antigo.
Depois de compartilhar momentos de flerte e melancolia nas madrugadas com Jeremy (Jude Law) na lanchonete dele e de ter um beijo roubado, decide dar um tempo de Nova York e partir numa viagem pelos Estados Unidos sem destino certo.
No meio do caminho, em Memphis, começa a trabalhar como garçonete em um bar decadente, se apega as rotinas dos clientes, escreve cartões postais, junta dinheiro para comprar um carro. Pequenas ambições, rotina, tédio, observação das angústias dos frequentadores.
Gosto muito da música e do filme, embora os dois sejam pouco conhecidos, e não tenham se tornado assim obras primas desde que foram lançados. Me interessa demais a figura do atendente, do garçom ou garçonete, da pessoa que esta ali, que intermedia a cozinha e a mesa, retira pedidos, escuta.
Durante a época de faculdade, tal qual nossa amiga Lizzie, eu amargava um pé na bunda, e, além de estudar e fazer estágio, comecei a pegar turnos no Godofredo, então o primeiro bar dedicado a cervejas especiais e artesanais em Brasília. Detalhe: quando comecei, eu não bebia cerveja.
Mas fui aprendendo por ali que o líquido espumoso podia ter diferentes cores e sabores. Que a cerveja de trigo envolvia um ritual específico de girar e servir até o fim em um copo enorme. Que o colarinho no chope tem uma função e um som discreto que se desprende das microbolhas estourando.
Depois de um tempo, eu tinha minha preferida, a cerveja Medieval, que era ainda produzida em pequena escala pelos mineiros da Backer. Selada com cera, cada garrafa marrom ocultava um símbolo astrológico na tampa - Lua, Sol, Vênus, Júpiter - que deveria ser derretido com a chama de uma vela, na frente do cliente.
Imagine o bar cheio, aquela confusão, e eu ali, tranquilinha, acendendo vela, girando a garrafa e ainda dando pitaco sobre o significado e influências do signo revelado pelo derretimento dramático na vida de quem tinha feito o pedido. Impagável, sério.
Em tantos casos, a habilidade de performance na mesa é fundamental para a experiência que se pretende passar. Inclusive as que não parecem, ao primeiro olhar, ser tão positivas.
Conta-se, por exemplo, com a indiferença e marra de um atendente carioca em uma casa de sucos numa manhã de sábado em Copacabana. Faz parte. Assim como a cortesia de despejar o choro na dose de cachaça em bar que também é distribuidora, iluminado por luzes brancas fortíssimas e decorado por pilhas coloridas - amarelo, azul, vermelho - de engradados.
Assim como também é esperado que o atendente recite o menu do dia nas cantinas italianas. Que consiga flambar com destreza um crepe Suzette, retirar espinhos de peixe, cortar com colheres um filé macio.
Não é, de forma alguma, uma ocupação banal ou fácil. Uma boa garçonete é, acima de tudo, uma pessoa que presta atenção. Que vai memorizando a clientela e suas preferências, que antecipa vontades, que opera na linha tênue entre discrição e solicitude.
O serviço de salão, aliás, requer habilidades das mais diversas. De comunicação, de diplomacia e de negociação no leva e traz entre cozinha e mesa, capacidade física de equilíbrio das bandejas, e até o mínimo de matemática para o temeroso momento de divisão de conta, conferência, adicional, aquela coisa toda.
O detrás do balcão é um dos postos mais estratégicos para se observar o desenrolar da vida. Ponto de encontro entre o privado e o público, de onde se pode observar o fluir das ruas, os ambulantes, os apressados de depois do almoço, os casais de primeiro encontro.
Mas embora exija bastante, também ensina. Tenho para mim que poucas ocupações são mais didáticas para o entendimento do ser humano quanto a de garçonete. Ou, pelo menos, é uma das que rende boas histórias, isso sim.
No Godofredo, enquanto zanzava pelas mesas, eu mantinha dois bloquinhos de papel grosso e quadrado. Um no bolso direito, para anotar os pedidos e levar até a cozinha. E outro, no bolso esquerdo, reservado para registrar frases que ouvia, ideias, fragmentos de conversa, observações da frequência e companhia de alguns clientes.
Ser garçonete é um prato cheio para quem escreve crônicas, um disfarce perfeito para quem tem fome de conhecer o outro sem precisar, necessariamente, se mostrar(tanto) no processo. Pense nisso na próxima vez que se sentar num estabelecimento e achar que pode (não pode) destratar a pessoa que está no serviço. E, claro, não se esqueça da gorjeta.
aaaa que lindo ! Trabalhei como garçonete por um tempo e realmente é um trabalho que necessita de atenção aos detalhes e as historias, aaaa as historias dos clientes vamos misturando aos pedidos... não era facil mas eu adorava !
conheci Wong Kar Wai há pouco e já considero pacas. não vi ainda esse filme que você mencionou mas agora vai pra listinha <3 obrigada pela sugestão!