Um dia você é jovem, mas passa muito, muito rápido. E, se você foi jovem antes de 2020, já era. A cabeça não é a mesma, não. Escrevo (também) para não esquecer e tenho esquecido até de esquecer. Encasqueto com as coisas e depois é um árduo trabalho desfazer certezas. Aceito mal, muito mal os lançamentos de músicas, os novos filmes, novas redes sociais, tudo é um ruído sem fim, sou uma neo idosa? Talvez.
Eu quis tanto ser aposentada, vivia falando isso, pois bem: ando vivendo uma aposentadoria às avessas. Tenho mais tempo e pouco dinheiro. Valorizo tudo que entendo como um investimento na longevidade; ginástica, caminhada, banho de sol, comer aveia de manhã. Me vejo querendo ficar quietinha, convido as pessoas para comer um bolo, fazer um escalda-pés, ir pro baile dançar um xote, prazeres que flertam muito com essa última etapa da vida. E caduco muito e precocemente, pelo visto.
No final de semana que passou, por exemplo, foi o cúmulo. Cheguei toda bonita, arrumada e perfumada para o chá de fraldas da nova garota Guimarães, a Cora.
Mas cheguei com 24 horas de antecipação, no sábado, porque não me convenci de jeito nenhum que era no domingo.
Doida, doida, totalmente drograda como diria Fernandinha Torres.
E cheguei sem almoço, com um rosé gelado debaixo do braço, meu kit de bruxarias ( Fabi me jurou que dessa vez faria chá de bençãos) com direito a àgua do mar, conchas, sais, velas e tudo, e fiquei ali, com fome e descrente.
Aqui eu preciso dizer do horror que eu tenho, que minha mãe sempre me incutiu, de ser uma hóspede inconveniente. Aliás tenho uma birra com essa palavra, um medo horripilante de abusar da boa vontade, como se tivesse mesmo um limite que as pessoas nos podem aturar por vez.
E eu vinha, vejam vocês, de um outro evento, do lado oposto da cidade, onde tinha passado a noite, uma festa de pijama para adultos, que resultou num magnífico café da manhã para vários amigos. Eu não tinha pensado em ficar, outra mania depois dos 30 é querer dormir na própria cama a qualquer custo, mas, já que fiquei, quis me fazer útil logo cedo.
Porque, onde quer que eu chegue, eu vou bem bonitinha para o meu lugar: a cozinha. Prefiro ficar na cozinha do que na sala de estar. Mil vezes enrolar docinhos, fritar pastel ou cozinhar batatas do que responder perguntas sobre meus planos para o futuro.
Tem nenê com fome? Ótimo, vamos fazer um negocinho para Isabel, talvez uma das comensais mais exigentes do Conchas. A família goiana chegou mais cedo? Pois pegamos as aparas de carne, a pimenta de cheiro, vai sair um carreteiro em dois tempos. Tem convidado que não suporta pedacinhos de cebola? A gente bate e rebate o molho do cachorro-quente.
Precisa de opção vegetariana, vegana, sem glúten, sem lactose? Se for preciso a gente inventa sim, fazemos, vamos ligeiro servir as crianças e idosos primeiro. Não sei se é criação, esse jeito de seguir o fluxo das casas sempre cheias, um embalo que faz com que , mal terminado o café, já se está picando as cebolas para o almoço, cuja louça é lavada do lado das gamelas onde descansam a massa dos biscoitos do lanche da tarde, que são comidos com o cheiro do refogado da sopa do jantar no ar, nesse ciclo sem fim.
E, embora o mais comum ainda seja encontrarmos mulheres nestas funções, me peguei revendo um vídeo que viralizou de uma família que fez absolutamente todos os enfeites, comida, convites e decoração do casamento de uma das integrantes e achei maravilhoso. Em tempos de “Alexa, vê se está bom de sal", precisamos ser e valorizar quem é desenrolado e resolve. Ainda mais se for da família, aquela de sangue ou a de coração.
Família é um prato difícil de preparar, me lembro com frequência da frase do Francisco Azevedo no bonito livro Arroz de Palma. Mas pode ficar mais fácil e divertido quando cada pessoa vai ocupando seu lugar, colocando seus talentos à favor do grupo, se responsabilizando sem ninguém precisar pedir pelas tarefas que surgem espontaneamente em qualquer grupo de pessoas que estão repartindo o tempo e o espaço umas com as outras.
Cuidar pode ser cultural
Não sei dizer se é uma questão de personalidade, de criação, de aprender com o exemplo das mulheres bravas de tantas famílias.
Mas o fato é que existe, na cultura brasileira que também é bem latinoamericana essa abertura para o cuidado e a nutrição. E às vezes só nos damos conta disso diante do contraste.
Uma amiga querida que está recém-parida do outro lado do oceano me confidenciou que, embora a sogra estrangeira viva relativamente perto e visite, não é de grande valia. Quis entender melhor, uma vez que, até onde eu sabia, elas tinham uma boa relação. E continuam tendo, mas a vovó do pequeno francobrasileirinho chega na casa dos filho e quer ficar no o neto no colo, fazer gracinhas, bebericar alguma coisa e ir embora.
Quer dizer.
Não lava as mamadeiras, nem pendura as roupinhas do neném no varal, e jamais pensaria em cozinhar uma sopa em proporções gigantes e congelar potes para a puérpera. Limpar um banheiro? Bien sûr que non!
Talvez seja um efeito colateral de tanto que aquele povo degolou reis e rainhas, queimou sutiãs e pneus, proclamou liberdades individuais. Minha amiga diz que é por aí que a banda toca por lá, ela não se mete na criação mas também não se envolve tanto nos cuidados. Um individualismo assim bem blasè e muito que conveniente, se me perguntarem. Mas o amor, o afeto, são muita coisa, mas quase nunca são convenientes.
Claro, uma sogra brasileira pode até se meter na sua vida, que dispare conselhos de criação não autorizados, mas é esperado que ela o faça enquanto embala seu neném para que você lave o cabelo.
Vai reclamar do jeito que você organiza a despensa, mas vai enchê-la com farinha de mandioca que ela trouxe no avião, carne seca, bolo de rolo. A família brasileira vai fofocar, vai se engalfinhar nas datas comemorativas, mas, se tudo der certo, vai estar lá para te socorrer, consolar, encher balão, pregar quadro, instalar chuveiro.
Porque, aqui, ainda reluz um rastro de aldeias e quilombos, o sabor de outros costumes, a cozinha de roça, a comida simples de todo dia que é a base, as mesas postas para vizinhos, agregados, forasteiros. Se a gente não se move por um impulso adquirido para passar um café e oferecer para a visita que chega sem avisar, o que somos?

A verdade é que, de toda forma, deveríamos todos nos encantar coletivamente pelo cuidado. Deveríamos nos envolver em cuidar uns dos outros. Nascem cada vez menos crianças, os idosos seguem vivendo tanto, e a gente aqui, no meio de gerações, entre o analógico e o digital, vivendo o fim de uma era e o começo de alguma outra coisa que eu não sei, mas que intuo que vai chegar com grandes impactos.
Cuidar, de si e dos outros, é revolucionário. Saber fazer e fazer porque se sabe e porque se ama é um caminho que vale ser trilhado, é um lugar que se deve ocupar de novo e de novo. Eu digo e repito: cozinhar e servir é um privilégio.
Quero pensar que, ao estar ao redor e preservar esse espaço de cuidado, pode prevalecer a ideia de que precisamos uns dos outros para crescer, para usufruirmos dessa vida de outros modos, menos utilitários e mais amorosos. A titia tem certeza que vale a pena.
Lindo texto!
Adorei <3