Sejam todas e todos muito bem vindos ao Conchas, esse restaurante literário, delírio compartilhado, esse ponto de encontro, essa mensagem na garrafa que chega toda semana na sua caixa de entrada.
Essa semana eu pensei com força em uma cena quase esquecida, uma memória que eu não revisitava na minha penseira.
Houve um tempo em que eu vivi no quarto andar de um prédio na rua Frei Caneca, em um apartamento escuro. A janela da cozinha dava para o vão central e para o outro apartamento do andar.
Do outro lado, por conta da planta invertida do imóvel, eu podia ver dona Renata, uma senhorinha italiana, solteira, valente, que vivia só apesar de já ter passado das oitenta décadas de existência.
Além de sua pequena aposentadoria, dona Renata complementava a renda, além de ocupar a cabeça e as mãos, com a produção e venda de acepipes, como caponata de berinjela, sardella, conserva de abobrinha. O melhor deles: pesto. Um glorioso, aromático, verde e indulgente preparo, que ela fazia com esmero em um processo bem específico.
Então eu já sabia o que vinha por ai quando a janela da cozinha dela amanhecia cheia de arbustos frondosos de manjericão. Ela lavava e os deixava ali para secar um pouco. Depois, com uma tesourinha, cortava apenas as folhas, que passavam ainda por um pano limpo para que não restasse umidade. E então, era hora de cuidar dos demais ingredientes.
Alho sem a parte do meio, que ela descartava, além de queijo parmesão de boa procedência - italiana, certamente - assim como um azeite de um verde profundo. Além disso, ela possuía dois liquidificadores que são verdadeiras relíquias, cor de creme e marrom, base sólida, jarra inquebrável. Não se fazem mais assim. Eram dois, mas não pense que era para fazer mais ao mesmo tempo, não. Um era para doce, outro para salgado, e eu descobri um dia pedindo emprestado e recebendo de volta a pergunta: mas é para bater o quê?
Logo quando me mudei, aquela senhorinha apareceu com uma cafeteira Moka que devia ter pelo menos o dobro da minha idade, xícaras pequenas e levíssimas, um açucareiro de metal. Quando eu recusei o açúcar - eu nunca adocei café na vida - seus olhos se iluminaram em um entendimento antigo, e ela disse: gosto disso, uma mulher econômica!
Lembrando disso agora, a associação que faço é com a guerra, a escassez, a pobreza sem fim que colocou tanta gente em navios em direção a essa terra que promete tanta abundância, trabalho, esperança.
Não deve ter sido nada fácil, e ela me contou muitas histórias que guardo com carinho, bem como seu cartão de Natal, escrito à mão, e sua figura enquadrada na janela pelos galhos de manjericão.
Um dia eu pude retribuir o carinho em forma de bolo, e pensei em escrever sobre isso, mas lembrei que já tinha feito no texto abaixo, adaptado de uma versão de 2017.
Alimentação sistemática
Um adjetivo que só faz totalmente sentido no glorioso estado de Minas Gerais
Sou cinquenta por cento mineira. É o suficiente para me manter sempre próxima de um queijo, profundamente desconfiada, alarmantemente sistemática e incuravelmente ensimesmada.
Isso nada mais quer dizer que eu invoco com as coisas. Tenho fases, como a lua, fases de andar escondida, fases de vir para a rua… É o que ponderou Cecilia Meirelles, poetisa carioca que muito flertou com o ser e estar mineiro (chegou a escrever Romanceiro da Inconfidência) mas que se tenha registro, nunca foi grande glutona, uma pena.
Poemas à parte, eu estaciono em ingredientes. Houve uns meses na minha adolescência que decidi que aprenderia a fazer risotos de todos os sabores. Detalhe: não sabia que alho-poró se usava a parte branca, então descartei tudinho do talo e usei as folhas picadas com um monte de vinho branco barato.
Lembro até hoje da cara da minha pobre avó, essa 100% mineira, comendo aquele troço. Ela não sabe cozinhar, é verdade, mas aprecia uma boa mordida e não era obrigada. É cada coisa indigesta que o amor nos obriga a provar, não está no menu…
Quando penso nessas obsessões gastronômicas, lembro de uma música da genial Regina Spektor em que ela questiona: "lembra-se daquele mês em que eu só comia caixas de tangerina? Tão baratas e suculentas!". Junte essas obsessões específicas com o prazer de fazer a xepa. Em 2016, num fim de feira do glorioso Ceagesp, comprei 8 kg de milho verde, ainda nas palhas, ainda cabeludos, por algo como R$ 5.
Comemos milho cozido, assado, com frango refogado, com arroz pelando de quente. Teve bolo de milho com coco que fez a alegria de dona Renata, a vizinha italiana octogenária, que mastigava e repetia "Polenta, isso conheço como polenta!". E não acabava o milho, que foi refogado na manteiga com cebola, e comido com feijão preto, tão povero, tão bom.
Vai ver, repetimos para não esquecer. Ou por um exercício de criatividade; quantas variações sobre o mesmo tema (ou ingrediente) conseguimos criar e comer?
Tenho amigos que inventaram restrições alimentares e gosto de pensar que, mesmo sistemáticos, têm direito ao benefício da dúvida. Afinal, pode não ser birra. Eles podem estar apenas tentando aumentar sua capacidade criativa de reinventar vários ingredientes que, para eles, são velhos conhecidos.
Existe também a hipótese de que, ao despertar nossos sentidos para um grupo de alimento ou um tipo de sabor, nosso cérebro estaria pedindo substâncias que estão em falta.
Na falta de estudos científicos mais esclarecedores, fica a dúvida: o cérebro, esse órgão poderosíssimo, por acaso indicaria chocolate em três refeições por cinco dias seguidos?
Ou avocado com ovos de café da manhã por um mês?
Queijo curado pareado com toda sorte de doce, banana amassada no ladinho do prato com feijão e farofa, batata frita mergulhada no sorvete, pão de queijo de jantar com linguiça no meio, canjiquinha comida em pé, na tampa da panela, encostada no fogão…
Bom, cada um encontra um sistema que funciona e seguimos assim, com uma alimentação que, se não é funcional, ao menos é sistemática.
Que lindo! Viva dona Renata!
Senti o cheiro desse pesto da dona Renata.