Vivi um raro momento de imersão total essa semana.Um vídeo me fez pausar e escutar. Um homem- alguns o chamariam de senhor- de cabelos e barba branca, moletom cinza, em uma cozinha bonita, sofisticada e talvez sóbria, não fosse o quadro com a fotografia do que parece ser um rockstar no melhor estilo Elvis tatuado ao fundo.
Me chamou a atenção a posição da câmera, distante, não muito o que se pratica hoje em termos de conteúdos audiovisuais. As regras dos gurus do marketing dizem que o público te quer perto, ali, na palma das mãos, como se a ponta dos dedos pudesse tocar os poros. Não sei, mas o dia que colocarem cheiro por celular, aí sim, teremos a tal revolução, um smarthnose. As pessoas seguirão sem cozinhar as tantas receitas que assistem, salvam, guardam, mas, pelo menos, vão poder sentir o cheiro sem sair de casa.
Bom, então esse senhor de moletom na cozinha chique numa distância razoável da câmara falava que ia cozinhar lentilhas no estilo que o pai dele fazia. Ele parecia ao mesmo tempo feliz e um pouco constrangido com a aparente simplicidade da receita: lentilhas, alho, cebola, azeite e louro. Contou que o segredo, que ele não ia revelar logo de cara, estava na finalização do pronto.
E lá foi ele, deixar a panelinha de inox esquentar, derramar azeite, cebola bem picadinha, deixar dourar. Pegar um galho de louro fresco, bater uma palma com a folha entre as mãos para “acordar” os aromas, colocar o alho, dar tempo, numa conversa de cozinha com o observador.
O vídeo não é super editado, não tem cortes rápidos e trilha sonora dinâmica. Nada disso. Só esse homem, falando sobre os tipos de lentilha que existem, tempo de cozimento, diferença entre tampar totalmente a panela ou deixar ligeiramente aberta, os jeitos de preparar a leguminosa em outros países como na Itália, onde esse homem diz já ter morado.
Quando se dá por satisfeito com o ponto de cozimento, serve um prato com elas, as belas lentilhas, e finaliza com molho inglês legítimo, o Worcestershire. Azeite e limão Taiti espremido completam a experiência. Nada de acompanhamento, carne, arroz, nada, só aquelas lentilhas brilhantes, abundantes pela própria natureza, o homem homenageando o jeito de fazer do pai, e eu, assistindo. Hipnotizada.
Soube que teria que reproduzir aquele preparo, principalmente por ter ganhado o tal molho de uma amiga que mora em Londres e veio visitar. Fiquei devendo a folha de louro fresca, mas dei um tapinha na versão seca e me dei por satisfeita. Limão e azeite são constantes e, embora soubesse que provavelmente ficaria delicioso, não pude deixar de sorrir na primeira garfada.
Neste ponto da história, eu sinto a tentação de falar sobre a simplicidade, exaltando o simples, o fácil, o descomplicado.
Acontece que eu ocultei um pequeno detalhe.
O senhor de moletom cozinhando lentilhas é Alex Atala, considerado um dos maiores chefs de cozinha do mundo.
O vídeo em questão acumula até agora mais de 50 mil visualizações. Ele leva quase 23 minutos para passar essa receita. Mas eu sei que, na verdade, ele provavelmente levou as últimas quatro décadas para chegar nessa simplicidade.
Essa é a coisa sobre a maestria. Para fazer bem e rápido e com excelência, existem trabalho, tempo e vida invisíveis, mas que estão ali, no avesso dos talentos que custamos em entender que foram moldados pela disciplina, prática, pelas recusas, pelas dúvidas, pela persistência.
Cada receita feita à perfeição esconde incontáveis tentativas e erros. Cada texto escrito é composto de tantos rascunhos, de edições, de outros caminhos que não aconteceram para que as palavras encontrassem esse lugar.
Nesta edição eu quis te lembrar - e me lembrar - desse bastidor maior, do esforço por trás de todos os atos que reconhecemos publicamente como geniais como o fruto de esforço, constância e tempo, esse ingrediente maior. Qual foi a última vez que você se deu conta disso ao se deparar com o trabalho de alguém?
Cate por aí
Para quem ficou curioso com o molho inglês, eu recomendo muito esse vídeo do Insider que mostra como a Lea & Perrins faz o molho com uma receita de quase 200 anos, e como o processo é intrincado para chegar nesse sabor que é ácido, salino e cheio de umami.
As lentilhas também merecem todo o respeito! Nesse time lapse, podemos acompanhar 2 meses de germinação em 2 minutos, e nesse outro, a explicação sobre o ciclo de plantio e a colheita de lentilhas no estado norte-americano de Montana. É em inglês, mas tem legendas. Tem um pouco a vibe daqueles VHS que os professores passavam na escola pra explicar algum assunto, mas eu gosto.
“Pode incluir a gorjeta?”
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que lindo esse texto! essa vida de instagram, de 'resultados' e de 'utilidade' fez muita gente perder o prazer pelo processo - que inclui tempo, tentativas e tantas coisas inesperadas que surgem (e que podem ser ótimas também)
Olha só, quem está reconhecendo o trabalho da edição! haha! Amo seus textos