Sejam muito bem vindos ao Conchas, este restaurante imaginário artesanal.
Hoje, peço licença da crônica ( que, aliás, segue bem viva) para reproduzir um conto meu, publicado originalmente na Revista Jezebel.
Não chove aqui em Patatais. A mãe sempre diz. Ou dizia, quando lembrava tanto dos dias de chuva quanto dos dias de Sol rachando a camutinga. Ultimamente, vivia submersa na neblina do esquecimento compulsório.
Pensou nisso enquanto caminhava pela rua torta que, ademais, é chamada de Rua Direita.
De todo jeito, também nunca houve uma Rua Esquerda, pensou, enquanto avançava em direção ao Mercado Municipal.
Havia chovido. Tanto o asfalto quanto as folhas das árvores — goiabeira, jamelão, manga e até ciriguela — cintilavam com aquela nitidez que só a água que cai do céu consegue conferir.
De onde vinha? Achava que devia ser da farmácia do seu Amaro, ou quem sabe do armarinho da dona Cotinha? Mas, que coisa, não carregava nenhum pacote que justificasse o trajeto. Sentiu novamente aquele aperto no fundo da garganta, que ardia e descia para o peito.
Começava a esquecer?
Porque estava mais uma vez em Patatais, e como havia chegado ali?
Cléc, cléc, cléc.
O tilintar do vidro, seguido de um grito estalado de criança demoveu-o dos próprios pensamentos. Se deu conta de que esquecer ou lembrar não adiantava muito se o mistério maior acontecia quase sempre no momento presente.
Seguiu os sons, quase como se os ouvidos, que pegavam fogo, tateassem o ar úmido e frágil da tarde.
Em uma ruela lateral, daquelas ainda de parelepípedos desgastados já quase que inteiramente tomados por vegetação rasteira — como era possível? — ele o viu pela primeira vez.
O garotinho de uns poucos anos de idade, sentado numa parte relativamente plana do chão batido, os joelhos tocando a terra vermelha. O cabelo cortado baixo, o olhar esperto, que parecia querer responder a mais difícil das perguntas.
Uma das mãozinhas segurava a blusa revirada no buchinho estufado. Aproximou-se, e a visão de cima lhe permitiu identificar o tesouro que tocava o umbigo do menino: bolinhas de gude.
— Ei, chegou mais um! — gritou um garoto de bermuda verde e camiseta quadriculada.
Aquela vestimenta parecia muito com o uniforme do Patoré Esporte Clube, mas o desenho bordado parecia antigo, desbotado. Ele coçou a base da nuca; o garoto de bermuda verde, que o encarava, fez o mesmo.
— Ei, este tá velho, hein! Você é avô? Ó, Dezoito, vem cá ver.
De um insuspeito, porém robusto abacateiro, desceu um rapazote de calça boca de sino, regata branca e sapatos desgastados. Uma penugem fazia as vezes de barba.
Quem eram aqueles garotos e porque nunca tinha olhado para eles antes? Será que sempre estiveram logo ali?
O rapaz pareceu ler seus pensamentos, pois estendeu a mão direita.
— Opa, eu sou o Dezoito. Quantos anos temos agora?
Ele estendeu a mão esquerda, num gesto espelhado.
Temos?
Confuso, ele balançou a cabeça e murmurou para dentro de si como sempre fez. Será que a mãe passará por isso? Seria um estágio da demência iminente?
Tamanha confusão não era exatamente inédita. Mas, desta vez, sequer se recordava de ter estado no Boteco do Mauro.
Recolheu as mãos, fechou-as em concha, baforou o hálito quente e o levou às narinas. Nada além do bafo usual. Nenhum cheiro de cerveja ou da marvada, nem sequer um rastro de torresmo da dona Quitinha.
Por onde andei?, perguntava-se.
— Qual idade você lembra, sô?
Tanto o garoto mais velho quanto o mais novo, que a essa altura já havia recolhido as bolinhas de gude num saco de juta, daqueles de guardar polvilho, o encaravam, ressabiados.
— Vocês dois…são irmãos? — arriscou, incerto.
Os moleques explodiram em risadas, como se tivessem escutado uma piada suja e inapropriada, daquelas que o tio Geraldo contava escondido.
O menino do meio cutucou o rapazote com o cotovelo e respondeu:
— Engraçado que, quanto mais velho, mais demoramos a entender os trem.
O rapazote assentiu com a cabeça, dando de ombros como quem diz “fazer o quê”, e então se virou para ele.
— O sô, os mais velhos não me contam, mas, quem sabe o senhor pode me dizer. Eu vou passar no vestibular, né? Sabe dizer em qual cidade?
Vestibular? Ele sente a cabeça palpitar, como se o sangue no cérebro estivesse sendo misturado com uma colher de pau, tal ambrosia no tacho. O estômago também reclama, e ele sente ânsias de segurar a barriga redonda com as mãos e se firmar de alguma forma naquela realidade absurda.
— Isso é uma pegadinha? — pergunta. — Foi o meu primo Itibira que mandou vocês pra me esperarem aqui? As meninas que inventaram isso, como é que é?
Os moleques se entreolharam.
— Doze, melhor ir chamar o Quarenta e Dois, ele é que é bom de explicar. Chama o caboco lá!
— Chama você, uê!
Os moleques começam uma discussão acalorada e, de repente, Alfonso sente uma puxada na barra da calça. O menino pequeno estende a mãozinha, na qual repousa o que parece ser uma pérola. Alfonso recolhe aquele pequeno tesouro e o examina. A bolinha de gude azul marinha, dentro da qual se espalham minúsculos fragmentos leitosos, parece um modelo de galáxia.
Por um breve instante, ele carrega a própria Via-Láctea na palma da mão.
E, então, aquele dia veio de uma vez, recheado de texturas na memória. A queda do cavalo, o cheiro de grama orvalhada e, depois, da tintura de iodo com arnica, que deixou manchados os joelhos.
A casca dura do pão de queijo arranhando o céu da boca e seu interior pelando a língua. A maciez dos pelos lustrosos de Folhão, o cavalo mítico que viveu para sempre. A exata cor roxa da saia áspera da tia que dormia na cadeira, na varanda da casa da fazenda. Tudo.
E aquela bola de gude, comprada na única bodega da antiga rodoviária central. No dia em que completou seis anos.
O pai, alto e forte, o tinha levado da roça para a casa da cidade. A bolinha era um suborno do velho para que a mãe não ficasse sabendo de nada.
Alfonso aproxima a esfera dos olhos, que se apertam, miúdos, como que para focar. Definitivamente, era a mesma bolinha; não poderia haver duas iguais, com o mesmo peso e feitio.
Lembrava, sabe-se lá porquê, desses detalhes todos com uma exatidão assombrosa.
Tinha sido assim todavida, e era como se todos os números, placas, beijos, cidades visitadas, batalhas perdidas e estradas percorridas, tudo voltasse para ele.
Ele se agachou, os joelhos repreendendo o movimento súbito e o ciático lembrando-lhe da sua precária condição física de velho.
Na altura do rosto do garotinho ele notou os olhos, que também se apertavam, concentrados.
— Menino, como cê chama?
A criança pensou um pouco e, naturalmente, ele o viu coçar a moleira com a mão, até a base do pescoço.
— Minha mãe me chamava de Fonsi, mas aqui, eles me chamam de Seis. E você?
Foi sua vez de coçar a cabeça. Os cabelos prateados, arrepiados de espanto, a cabeça mais uma vez correndo em parafuso para tentar dar conta do coração.
— Eu sou o Alfonso. Mas penso que, aqui, podemos me chamar de Sessenta.
“Entender os trem” ♥️
Sua escrita é uma pérola!
Eu amo esse conto ❤️