Que bom te ter aqui!
Nas últimas semanas tem acontecido muitas coisas do lado de fora.
Viver tem ganhado a dianteira na escrita, e eu acho que é uma coisa boa, também. Sigo na minha viagem cada vez mais ao Sul. Atravessei a fronteira em busca de bons ares e, embora a escrita siga presente, é para a edição, para a costura, o arremate cuidadoso das palavras que não tenho tido horas. Nem sempre o inédito é o melhor, então, vamos de repeteco.
Hoje, no Conchas, teremos uma crônica com chá e bolo, com direito a receita no final. Tu vens?
Receita de bolo *
Quando ele entrou pela primeira vez na cozinha da casa amarela, vasculhou tudo com os olhos, o preto no branco dos balcões de mármore e armários sonhados e planejados, fez uma suposição muito específica.
Cadê a sua KitchenAid? Quis saber. Era um cômodo longo e espaçoso, iluminado e amplo. Anexo, uma despensa. Talvez estivesse lá. Não estava. Eu entendi o espanto. Não me intimidei. Ofereci a cadeira com um gesto para que sentasse e me coloquei em ação, catando maçãs na fruteira, ovos e leite na geladeira alvíssima. Manteiga, jamais margarina.
Na despensa, empoleirada em um tamborete de madeira milenar, tentava alcançar a batedeira. Não minha, mas da minha mãe. Presente de casamento. Mais velha do que eu. Ainda potente, apesar de barulhenta. O único utensílio amarelado daquela cozinha, a inscrição da marca há muito apagada pelo uso.
Com o grande elenco reunido, me pus a designar papéis. Primeiro, antes de tudo, ligar o forno, deixá-lo ao menos morno. Untar a forma com a generosidade que normalmente reservamos às crianças e velhinhos. Olho para ele, sentado ali, pés batendo por debaixo da mesa, mãos que passam pelos cabelos. Pensei que você tinha uma daquelas vermelhas, combina com você, justificou.
Nesse momento o olho de relance e peço ajuda. Não por precisar, mas para tê-lo ali, braços se esbarrando, dividindo o mesmo balcão, mesmo com espaço de sobra nas outras bancadas. Depois de provar meus biscoitos, madeleines, tortas e bolos, ele quis ver onde e como eram feitos. Curiosidade jornalística.
Descasca e corta as maçãs em cubos médios, orientei. Enquanto isso, quebro um ovo, essa cápsula de vida potencial, separando com cuidado a clara, que viraria neve. Ou espuma. Clara em neve é lindo mas não é um nome muito preciso, ele observa. Olha, o que dirá a massa pobre, respondo. Rimos.
A batedeira balzaquiana parece se preparar para levantar voo enquanto incorpora ar as claras, que aos poucos mudam de cor e textura. Essa receita tem cara de que vai dar errado, eu confesso. É difícil acreditar que essa mistura vai virar um conforto quente, pedaços de fruta ainda distinguíveis, crosta de açúcar e canela para completar. Duvido que alguma receita não funcione com você, ele adula. A fome e o flerte, esses dois hereges.
Reservados os picos de neve, hora de bater manteiga, açúcar e ovos, até formar um creme pálido. Na minha casa só tinha bolo de caixinha, ele solta. Naquele instante, quero abraçá-lo, mas que jeito. O importante é ter bolo, replico.Sempre. E carinho. E olhares cúmplices e braços que se esbarram e resto de massa dividida por dois.
Bolo a gente faz na mão, colher de pau puída, faz ralando cenoura em lâminas vacilantes, bolo a gente faz até sem ovo, amassa banana para dar liga, bolo é bom até quando dá errado e vira petit gateau. Bolo a gente "assa" em frigideira, chama de "bolo de panela"(pancake) e come com mel e frutas.
Bolo é amor, a gente inventa.
Mas se o amor é bolo, ele cresce, assa, às vezes sola, quem sabe se enfeita, é dividido.Acaba. Existe essa expressão popular em inglês: You can't have your cake and eat it. Não é possível ter e usufruir ao mesmo tempo; nem reunir o melhor dos dois mundos. Ter o amor sem precisar da dor. Viver as delícias à dois sem as responsabilidades. Ser melhor amiga da sua filha. Terminar e continuar amigo.
Ter o bolo inteiro, completo, a cobertura devidamente espalhada, morangos e chantilly e querer provar sem arruinar o arranjo. Ao nos deliciarmos, necessariamente destruímos aquela beleza, quebramos a casca, batemos a clara.
Fazer um bolo é fascinante também porque precisa-se de tão pouco mas os processos são irreversíveis. Uma batedeira, uma fout, tigelas de inox, assadeiras inventivas, são vaidades de estilo, são poemas rasgados, gestos extravagantes, declarações de amor em carro de som. Impressionam, mas não são o essencial. O brilho nos olhos é o fermento da massa. Aceitar a primeira fatia é o sim que tanta gente busca.
Mas por enquanto, ali naquela cozinha limpa, na luz dourada de um fim de tarde, ele não sabe disso. Finjo que também não sei. Passo um café fresco e encorpado, assistimos o bolo crescer enquanto bato creme de leite e açúcar para acompanhar. Não é sempre, não é quase nunca, mas às vezes, é tudo de que precisamos.
*Texto publicado originalmente no Medium em 2018.
Bolo reconfortante de maçãs
Essa receita começou com a tia Ercília, uma das pessoas mais bondosas que eu conheço, que sempre cozinha com um capricho único.
Mas junta-se eu, que tenho mania de ir mexendo nas coisas, e a vida, que tem por costume mudar, e a receita acaba sendo também, digamos, dinâmica. Chega-se sempre em uma parte em que parece que o barraco desabou e que o seu barco se perdeu. Confia.
E, se ainda assim tiver receios, assista esse vídeo no qual eu faço a receita na versão peligro; flambando as maçãs.
Ingredientes
3 maçãs firmes ( uma delas, se você estiver com sorte e fortuna, pode ser uma maçã verde para trazer mais acidez).
3 ovos ( os melhores e mais frescos que puder encontrar)
2 colheres (sopa) de manteiga ( se possível, em temperatura ambiente)
1 xícara de açúcar (cristal? refinado? demerara? orgânico? você decide!)
1 xícara de aveia ( flocos finos ou grossos? se der, use meio a meio)
1 xícara de farinha de trigo
1 colher (sopa) de fermento em pó
Especiarias ao seu bel-prazer ( canela, cravo, noz moscada, gengibre, cardamomo, em pó, tudo vale a pena!)
Como faz
Corte as maçãs em cubinhos, se quiser tire as cascas, mas se forem maçãs perfeitamente cultivadas, orgânicas até, pode deixar. Pingue umas gotinhas de limão para não escurecer e reserve.
Separe as gemas das claras, colocando cada polaridade deste mistério que é o ovo em uma tigela suficientemente ampla.
No lado amarelo solar das gemas, adicione o açúcar e a manteiga e bata bem até que a cor esteja pastel, suave, e os grãos doces imperceptíveis a olho nu. Hora de integrar as maçãs cortadinhas, a aveia e a farinha, misturando com delicadeza de bailarina. Por fim, salpique as especiarias que escolher, mas eu não abriria mão da canela de forma alguma.
Na parte clara e espessa, é preciso também inflingir mudanças. Bata até ficar em neve, em picos médios, mas firmes. Feito isso, adicione o fermento em pó, de novo como faria uma dançarina na ponta do pé.
Agora é unir as duas partes, invocar de novo o mistério da integridade do ovo, untar uma forma bem boa, passar a massa ( e as maçãs). Se quiser, faça uma oração, um agradecimento, uma cruz na testa ou no ombro.
Depositar em um forno pré-aquecido e também já conhecido, de preferência um aparelho com o qual você tem intimidade o suficiente para saber de que lado doura mais. Se quiser, pode salpicar de açúcar grosso e canela fina por cima, para criar uma crosta.
Não importa o que aconteça, não abra antes de uns 20 minutinhos, mas, da mesma forma, não se distraia com as coisas do mundo e esqueça o bolo ali por mais de três quartos de hora.
Pode comer quente, com a fumacinha saindo, os pedaços de maçã tenros, o cheiro alucinante da canela invadindo a sala e o quarto. Pode servir com iogurte natural, ou creme batido, ou sorvete. Pode passar café fresquinho, encher um bule de chá mate ou preto. Pode arranjar uns quadradinhos, três ou quatro, em uma travessa de porcelana, e ofertar para aquela pessoa que você gostaria que, em breve, cortasse maçãs do seu lado.