Se preferir, você pode escutar esta edição:
Para todas aquelas que se propuseram a oferecer; comida, colo, carinho — hoje, eu estou aqui com e para você.
Vai chegar uma hora em um dia de expediente cansativo — provavelmente numa segunda-feira nublada — que toda pessoa que se dispôs a servir ( seja por vocação ou piração) — vai passar.
Eu sinto muito.
É inevitável.
No entanto, ter a consciência acessa nos ajuda a atravessar. Attraversiamo.
É chegado aquele cliente. Que diz estar com fome, sim. Faminto. Vinde a mim, disse a mulher que escreveu mas que não estava na Bíblia, mas que cozinhava.
Vinde a nós toda pessoa em situação de xoxa, capenga, manca, anêmica, frágil e inconsistente. Um restaurante é lugar de restaurar. A alma? Também.
Mas aí é que está.
Essa pessoa. Você vai querer servi-la, óbvio, é para isso que abrimos as portas. E ela vai falar uma coisa, mas vai agir de outra forma. E, para aplacar a fome, é capaz que você cozinhe um banquete inteiro: amuse-bouche, belisquetes, tapas, entradas, prato principal, molho, salada, pão e sobremesa e vinho e cafezinho e doce e laranja descascada.
E não será o suficiente. Este cliente vai recusar tudo, ou provar e fazer cara de enojado. Ou pedir para voltar com a pasta. Vai reclamar do cheiro das taças, da acidez do vinho, do desalinho do guardanapo, da falta de reflexo nos talheres. Vai achar lasca em prato e pelo em ovo. Vai confundir o salão, a cozinha, quiça a limpeza e a recepção.
Essa pessoa. Eu falo dela com tranquilidade e alma lavada, porque, em mais refeições do que o meu ego delirante gostaria de admitir, eu fui.
Essa pessoa. Que, de fato, está faminta. Que quer e precisa se nutrir. Mas que não consegue. Está tão cheia de si que não pode abrir a boca sem deixar escorrer um tanto de caldo entornado, fermentado, denso e sujo.
Como amiga, como cozinheira e comunicadora e principalmente mulher que ama e controladora em remissão, eu me sinto no dever de te alertar, você, esse ser humano bacana de bom coração, panelas cheias e intenções bondosas: não adianta.
Me escorando no preceito bíblico ( que eu não escrevi, mas poderia):
Não deem o que é sagrado aos cães, nem atirem suas pérolas aos porcos; caso contrário, estes as pisarão e, aqueles, voltando-se contra vocês, os despedaçarão. - Mateus 7:6.
Sim, eu sei, eu sei. Tenho conhecimento de que me torno cada vez mais uma bruxa gospel, benzedeira de conceitos, na linha tênue da escrita de ajuda própria. Eu sei.
Mas escute só. Isto é muito sério.
Quantas chances desperdiçamos de matar a nossa própria fome e a de quem de fato precisa tentando servir a quem não está exatamente pronto para receber?
Porque cada mesa ocupada por clientes assim representa necessariamente outros comensais fantásticos que você deixa de receber no seu estabelecimento. Necessariamente. Cada bodegueira sabe exatamente o quanto e quantos consegue servir por vez, ou, pelo menos, deveria.
Não é com você, nem com sua comida ou vinho, decoração ou estilo. Não é. Esse cliente vai querer dizer que sim e vai te dar um aperto, mas não acredite. Não pense que é algo que você pode fazer, uma técnica, um curso, um poema, um molho secreto, uma dança sensual, uma música, um gesto grandioso.
Bobagem.
Veja bem, eu não me doí todinha a ponto de criar pérolas para desperdiça-las assim, e nem acho que você deveria. Então, entenda de uma vez:
Não existe tábua de salvação possível para quem não deseja de fato se salvar.
E, pergunte a qualquer mamífero ( no geral, só as fêmeas humanas conseguirão te responder) que possa confirmar.
É assim: ainda que o filhote esteja sim com fome, e as tetas estejam cheias, é dele próprio a decisão de sorver o néctar da vida.
Esse cliente - ou amigo, parceiro, amante, funcionário, sócio, pai, filho e espírito santo - vai surgir com trocentas questões. E problemas, e alergias reais e fictícias, e preferências e passados e histórias e desculpas e elocubrações. Não é sobre você, isso é deles.
Se neste momento do seu expediente, foste premiada com a presença desta pessoa, eu lamento, mas eu tenho, sim, uma sugestão.
Sorria. Aponte para o menu com um desprendimento estratégico, sabendo que não importa. Recite os pratos do dia, se tiver paciência, é claro.
E, se você conseguir, ofereça apenas um copo-d'água. Morno.
E o observe ir embora, sem alarde nem mágoa. É o que é.
Ali na frente, virando a esquina, gente boa, alegre e leve te aguarda, para compartilhar dos sons, da dança e do pão, para honrar o seu servir e a vida em si. Confia.
Querendo tatuar esse texto.
Obrigada por ele! Obrigada por escrever.
Eita como escreve 🔥