Quando me perguntam se eu sinto falta de morar em São Paulo, eu respondo que sim, claro, sempre que estou com fome.
Não é bem fome, é mais o desejo específico de comer um prato específico, ou, ainda, um estilo de cozinha, ou, até, aquele desejo de se perder por ruas desconhecidas sob o risco de descobrir sabores nunca antes experimentados.
E se tem um bairro com vocação para esse tipo de descoberta é a Liberdade. Tantas vezes subi depressa os degraus da estação do metrô apenas para dar de cara com a feira montada na praça e ser recebida com as lufadas de ar com cheiro de guioza na chapa, pastéis fritando, bolinhos dourados sendo assados na frente do freguês.
Gosto de pensar no movimento de antes da pandemia, na certeza que eu podia ter de encontrar, ali, adolescentes com adereços do Naruto, do Death Note, mocinhas com caldas de pelúcia, arcos com orelhas, e o que mais?
E o moço vendendo flores de lótus, que nunca soube se eram verdadeiras.E as promoções de cogumelos na porta do empório Bueno, a lojinha de papéis de dobradura, será que ainda resiste ali?
Durante muito tempo, somente ali, nas ruas delimitadas por postes em formato de lanternas vermelhas é que era possível usufruir de um saquinho de Mupy, bebida mista de soja e suco( o de maçã é, de longe, o melhor), do Melona, viciante picolé de sabor melão, e das caixinhas de papel que guardam o chiclete Murakawa.
Quantas vezes zanzei fingindo não saber o rumo apenas para me ver na intersecção entre a São Joaquim e a Thomaz Gonzaga, pronta para, ao cruzar a porta, cair, como um personagem de anime, num buraco rumo ao outro lado da Terra para aterrisar num típico restaurante familiar japonês.
No Kidoairaku a comida é sempre gostosa, não existem grandes truques, não é um lugar para comer só sushi. Os teishukus, espécie de prato feito japonês, é tudo que alguém com fome e meio desolado pode querer: uma carne ou peixe, como a anchova na brasa, servida com potinhos que revelam arroz, missoshiro, legumes, conservas, uma saladinha, um pouco de sushi, algum bolinho, variações do dia.
E, se estiver frio o suficiente, é adequado pedir um lámen, o fumegante recipiente com macarrão, cogumelos, lombo, brotos, coisas secretas que deixaram apenas os rastros de umami, esse sabor inenarrável, no caldo cozido por horas.
Nipo
Poderia dizer que essa afinidade com os sabores da cozinha japonesa foi um hábito adquirido na capital paulistana, mas não é verdade.
Começou aqui, na capital federal mesmo, com a longa tradição de frequentar os eventos do Clube Nipo.
Para além da Festa Junina, que era muita boa e servia tanto espetinhos bem brasileiros como os yakitoris, o clube nipo-brasileiro celebrava a cultura nipônica em noites de Sukiyaki, ou de Udon, ou de Yakisoba.
Tudo isso preparado no ginásio, servido por voluntários sorridentes ao som das apresentações de taiko, o “grande tambor". O batuque era alternado com microfone aberto e karaokê, sem vídeo, em japonês, apenas para os iniciados, ou para os senhorzinhos que já tinham tomado algumas doses a mais de saquê.
Passei incontáveis bons momentos da infância e adolescência nessas celebrações, onde a comida era sempre farta e nas quais aprendi a apreciar outro tipo de tempero, outras combinações possíveis dos mesmos ingredientes de todo dia.
Anos depois, atuando como jornalista de gastronomia no Correio Braziliense, pude apreciar banquetes na embaixada do Japão, bem como entrevistar e me deliciar com os pratos da chef Alice Yumi, que até pouco, comandava o Yuzu-an, que funcionava, isso mesmo, dentro do Clube Nipo.
O fechamento da casa foi uma grande perda pós-pandêmica para esse quadradinho, e eu espero que, apesar disso, de alguma forma, eu possa voltar a provar a comida de Yumi num futuro próximo.
Virada ao oriente
Com essa bagagem e interesse, mudar para São Paulo foi uma festa no que diz respeito aos sabores orientais. Em pouco tempo incorporei, maravilhada, sabores coreanos, temperos chineses, experimentações em casa, possíveis graças aos ingredientes dos empórios e feiras.
E, pensando agora, talvez eu tenha tentado viajar para a Ásia em tantas outras viagens, uma izakaya por vez.
Só isso explica minha busca por lámen em Santiago do Chile ( estava melhor que muita comida chilena), a insistência em comer churrasco coreano em Los Angeles(e hot pot), a busca por comida chinesa no Arizona(muito, muito apimentada, suspeito que pela proximidade com o México) e pelo jantar em Paris no qual eu comi Phò, o aromático prato vietnamita com caldo, carne, ervas frescas e macarrão de arroz. Estava délicieuse!
Bom dia Brasil, boa noite Japão
Tudo que é possível de ser imaginado, pode muito bem existir e, como já disse antes, a realidade anda dando dribles estonteantes na ficção, e não é de agora.
Essa semana, em um momento sem fome mas com muita vontade de comer especificamente oniguiri recheado de umeboshi(conserva salgada de ameixa), me deu um estalo.
E se, em algum lugar no outro lado do mundo, uma moça japonesa também desejava com todas as forças comer um pão de queijo recheado com linguiça?
E se ela pudesse viajar até outra cidade, como eu faria rumo a São Paulo, para poder se deliciar em um bairro brasileiro, um pequeno Brasil, e por ali tomasse café, caipirinha.
Quem sabe almoçasse um rodízio de churrasco ao som de samba ou de bossa nova, sonhando com o dia em que seus diminutos pés pudessem enfim tocar a areia na praia de Copacabana, que ela admira em um retrato na parede da loja de quitutes mineiros que gosta e na qual compra sacos de biscoito de polvilho para comer na viagem de volta para sua casa.
Imagino a moça assistindo novelas brasileiras com legendas, pesquisando fotos daqui pela geolocalização, tentando reproduzir na sua cozinha minúscula uma tapioca que seja, maravilhada com a textura, fazendo um esforço concentrado para compreender esse país tão grande, tão doido e colorido, tão distante nos costumes e na geografia.
Perdida nesse tipo de elucubração sobre uma japonesa imaginária, resolvi pesquisar um pouco e eis que encontro o que até então apenas imaginava.
Oizumi, um pequeno município na província de Gunma, cerca de 100 quilômetros ao norte de Tóquio, é conhecida como a cidade brasileira no Japão.
Essa matéria da BBC de 2015 conta como a população local é formada por 10% de brasileiros, e como o bairro ocupado por eles, um Pequeno Brasil, se tornou com o passar do tempo um destino turístico onde pessoas de outras províncias e da capital, e até mesmo de outros países asiáticos visitam para comer churrasco, fazer aula de samba e acompanhar roda de capoeira.
Por conta dessa imigração, a cidade tem bares, restaurantes e supermercados recheados de ingredientes tupiniquins.
Então, aonde quer que minha amiga imaginária (queria tanto que ela se chamasse Mai Yuki) esteja, espero que ela possa usufruir das comidas daqui como eu faço com seus quitutes de lá e sonhar com um Brasil melhor, que é também nosso sonho coletivo, mesmo, e principalmente, estando por aqui, agora.
Essa edição não tem links, fique a vontade para indicar alguns, se for o caso, nos comentários.
Obs.: adorei a montagem.
Chiclete Murakawa ou Marukawa ? Queria conhecer Oizumi!