Eu resisti muito a usar essas três palavras. Mas acho que, juntas, formam uma chave que abre um espaço dentro de cada um, de todos nós, para que possamos entrar num lugar fora do tempo e do espaço.Para focar.
Então, vamos lá.
Era uma vez um planeta distante, perdido na periferia de uma galáxia, com condições favoráveis para o desenvolvimento da vida mais ou menos como a conhecemos.
Água, carbono e oxigênio, além dos raios de uma estrela poderosa, tornavam possíveis o crescimento de flora e fauna, e, quem diria, de vida senciente. Sabe, meio como nós, humanos, que sabemos que existimos e percebemos o que acontece à nossa volta. Que nos reconhecemos uns nos outros, embora, vocês saibam, nem sempre.
Esses tais seres, assim como nós, eventualmente descobriram a agricultura.
E começaram a viver em comunhão com aquele solo. Passaram a acreditar em deuses do além céu, que eram capazes de conceder boas colheitas, fertilidade, alegria e saúde. Semeavam, cuidavam, colhiam e eram gratos.
Um dia, um casal descobriu umas frutinhas ricas em açúcar, que cresciam em plantas que se enroscavam em árvores. Comeram de se fartar, encheram cestos que levaram de volta para sua morada.
Naquela noite, a fêmea daquela espécie teve um sonho; uma figura feminina, uma mulher árvore, com raízes e folhagens e muitas daquelas frutinhas espalhadas pela cabeça e corpo lhe dizia que esmagasse as frutas e as deixasse em um recipiente de barro, fechado e no escuro, e que aquilo era um presente para a espécie.
Assim ela fez. Acordou e contou ao seu companheiro o sonho. Ele não deu muita bola, disse que se ela quisesse, que buscasse mais na floresta. E lá foi ela, impressionada com a mensagem do que já acreditava ser uma deidade.
E continuou sonhando com instruções cada vez mais precisas. E, depois de certo tempo e trabalho, obteve uma substância deliciosa, inebriante. Mágica.
Bom, ela provou e se deliciou. Seu corpo parecia bailar em um ritmo próprio. Tudo ao redor se enchia de um brilho diferente, de uma contagiante alegria. E ela agradeceu aos céus e quis cultivar aquelas plantas que se enroscavam, que cresciam misteriosas. Queria que os outros provassem daquela bebida, que aprendessem como ela tinha feito.
Dividiu seus conhecimentos, e dali a pouco eram muitas cultivando a planta, colhendo e experimentando com as frutas, que chamaram de Avu.
A bebida que delas extraiam, chamaram de Oniv. A descoberta se espalhou por muitas aldeias, por vários povos. A fruta passou a ser cultivada, se adaptou em lugares distantes, em solos improváveis.
Templos foram erguidos para cultuar a divindade que havia revelado os segredos de tal preparo, e festivais onde todos bebiam, dançavam e cantavam passaram a acontecer nas épocas de colheita.
O tempo passou. Aquelas sociedades, naquele planeta distante, foram se desenvolvendo. Mas não necessariamente evoluindo. Muita tecnologia e pouco apuro moral podem fazer estragos.
Os machos daquela espécie senciente passaram a invejar a potência infinita da criação e, com guerras e cruzadas, foram trocando as deusas férteis por deuses poderosos. Inclusive o deus do Oniv, uma nova entidade, bonachona e festeira, era agora masculino.
Além disso, a tal espécie inventou de ser dona dos solos. Cercar os territórios. E alguns seres começaram a se equiparar com os deuses que cultuavam. Diziam ser representantes deles naquele planeta.
E, como consequência, se acharam merecedores do bom e do melhor. Se acharam merecedores de conquistar o espaço, embevecidos com a própria divindade recém adquirida. Se acharam donos do tempo alheio, e, mais ainda, superiores aos que trabalhavam o solo, semeavam sementes, cultivavam esperanças.
Que espécie estranha, você pode pensar.
Todos precisavam comer, e, no entanto, os que cuidavam do cultivo dos alimentos não eram tidos como especiais, pelo contrário. Foram explorados; forçados por intermediários que acreditavam na suposta divindade, que mantinham aquela estranha hierarquia funcionando.
E foi assim que aquela espécie, naquele planeta distante, se tornou cada vez mais gananciosa, indiferente aos abusos que impunham uns aos outros, incapaz de sentir a conexão partida entre o solo e o que era produzido.
Com sistemas cada vez mais complexos, foram desviando a atenção e, de tempos em tempos, trocando os nomes, as formas de chamar aqueles que se equiparavam aos deuses.
Se passaram muitas, incontáveis voltas daquele planeta ao redor daquela estrela e, toda vez que eles pareciam aprender as lições, recaiam novamente, exploravam novamente, relativizavam o absurdo, o horror, a miséria a que submetiam os que eram seus semelhantes.
Não demorou muito, e foram todos varridos pelas forças naturais do próprio planeta, que não tolerou tanta exploração.
Dizem que aquelas frutinhas permanecem lá, crescendo, e que exploradores do espaço conseguiram levá-las para outros cantos do Universo, torcendo sempre para que seu destino seja diferente em cada nova esfera. Será?