Sejam bem vindos, esta é uma edição noturna do Conchas, seu restaurante fictício preferido!
Com a Lua Cheia ( no signo de Áries!) e o planeta Júpiter bem brilhante no céu, eu pensei que é uma oportunidade perfeita para um Lual na beira do lago Paranoá. Aliás, você já foi ao lago?
Quando o médico mineiro que por acaso era político ( e presidente) Juscelino decidiu levantar do chão de terra vermelha uma cidade futurística no meio do nada, muitos desacreditaram dele.
E, claro, não sem motivos. Os planos e plantas arquitetônicas eram de proporções faraônicas, e estamos falando dos anos 1950. Os boletos para tal façanha? Uma pequena fortuna. Muitas perguntas.
E a lonjura sem fim da então capital, Rio de Janeiro? Bom, mas um dos argumentos que justificavam a transferência do Distrito Federal para o centro seco do país era proteger a sede do governo de invasões marítimas. Pois bem.
Acontece que, no Planalto Central, água é um recurso precioso, que se preserva nas entranhas da terra, corre por cachoeiras, mas não é exatamente abundante, por exemplo, no ar. Nos meses de estiagem intensa, não é raro ter semanas inteiras nas quais a umidade relativa do ar mal alcança 10%.
E, acredite se quiser, poderia ser bem pior, se não fosse a construção do Lago Paranoá. Sim, construção.
Isso porque o idealizador do Lago Paranoá foi o engenheiro, botânico e paisagista francês Auguste François Marie Glaziou, membro integrante da 2ª Comissão Cruls ocorrida de 1894 a 1895. Naquela ocasião, ele projetou como um lago artificial poderia ser montado ali. Na verdade, Glaziou deixou instruções em uma carta:
[…] “Entre dois grandes chapadões na localidade pelos nomes de Gama e Paranoá, existe imensa planície em parte sujeita a ser coberta pelas águas da estação chuvosa”.
Abaixo, o desenho dos leitos dos rios Paranoá e seus formadores Torto, Bananal, Gama e Riacho Fundo, na área hoje submersa pelo represamento para formação do lago de Brasília.
Além de aliviar o clima seco, o Lago Paranoá se converteu na praia dos brasilienses, não sem uma parcela de luta e burocracias à parte.
Com uma orla de 80 km, áreas com profundidade de até 38 metros, o lago de Brasília é onde as pessoas vão para nadar, pescar carpas e traíras, observar as capivaras, namorar.
Mas também, para os mais afortunados, o lago é o lugar para andar de lancha, pilotar jet ski, se equilibrar em stand up paddle, remar canoas e caiaques, boiar com os olhos virados para o céu infinitamente azul. Inspirador de músicas e, quem diria, espaço de treinamento para surfistas e mergulhadores.
Piqueniques, festas de aniversário e até churrascos são encontros que se desenrolam com as águas do Paranoá de cenário.
Assistir ao descer do Sol no lago é um momento realmente belo, mas poucos espetáculos se comparam ao nascer da Lua Cheia, vermelha, refletida nas águas espelhadas.
O Lago traz mais do que um alívio térmico. Traz um espaço democrático, um respiro na loucura do poder, da seca, das decisões. Faz um tempo, eu estava longe, e pensava muito no Paranoá, no impacto de conhecê-lo pela primeira vez. Deixo o conto abaixo, uma oferenda para esse lual, um respiro para esse outubro e uma esperança quase juvenil de dias melhores.
O Lago que era mar
Foi a filha da vizinha, dona Cota, quem mandou avisar. Dizia que era certo, que tinha emprego na Capital. E era verdade mesmo, pois a futura patroa havia mandado a soma para a passagem, a dela e a dele, e até um pouco a mais, que era para comerem no caminho.
Miguel ouvira a conversa no batente da porta, os olhos despertos colados nas costas da mãe, atento. Fazia tempo que esperavam aquela notícia, todos eles: a mãe, as tias e primos, todos ali, na mesma casa de tijolos expostos, chão de terra batida, quintal seco sem uma árvore para subir.
Miguel não entendia muito bem por que precisavam partir. Gostava muito das tardes de brincadeira com os primos, de apostar corrida até a porteira, de jogar milho para as galinhas. Mas ultimamente tinha cada vez menos milho para jogar e cada vez mais tapioca para comer, de manhã e de noite e às vezes até no almoço, quando acabava a farinha, o arroz e o feijão.
Os adultos passavam muitas horas falando sobre o que poderiam fazer; de noite a mãe acendia a vela dentro de um pires de vidro, que ficava na frente da imagem da Nossa Senhora com seu manto azul. Fazia as preces e depois apagava, que era para economizar a vela e conseguir rezar a novena inteira com luz.
A mãe começou na mesma tarde a arrumar as poucas coisas de que dispunham para a viagem, acomodando-as dentro de uma sacola de lona com alças gastas.
Miguel queria levar seu único caminhãozinho, de plástico, mas o primo o convenceu de que não ia precisar; de que lá na Capital ele poderia ter outros brinquedos, que ia poder ter uma pipa e um barco até. Tinha ouvido falar que lá tinha mar no meio da cidade para colocar o barco para navegar. Porque era mais novo e estava partindo, aceitou, cabisbaixo, entregando o tesouro para as mãos ávidas do outro menino.
Naquela noite, depois que a casa silenciou, Miguel se esgueirou até o quintal, e não sabia explicar, mas, ao olhar para o céu estrelado, imaginou que o mar talvez fosse como o céu, mas mais próximo, a ponto de poder tocar.
Saíram antes do sol da pequena comunidade esquecida no Goiás. Era o tio que os levava até a rodoviária local, na carroça que usava para recolher papelão. No ritmo mastigado dos cascos na terra, mãe e filho iam agarrados, ele ainda com remela nos olhos, mole de sono. Acordou dentro do ônibus, a testa colada no vidro empoeirado. A mãe o abraçava; cheirou-lhe os cabelos espessos, deu um beijo no pescoço. Miguelzinho, você vai ver que bonito que é.
O cenário foi mudando diante dos pequenos olhos negros, e, muito tempo depois, quando fosse homem feito, Miguel haveria de se lembrar, ainda que da forma difusa dos sonhos, de quando entraram pelas avenidas largas, do tanto de mangueiras carregadas de frutas nos canteiros. Se lembraria de ver passar motos, bicicletas, e muitos, muitos carros, e da imensidão dos prédios que pareciam dominós gigantes, enfileirados um do lado do outro. Se lembraria do pastel gorduroso que comeu pela primeira vez lambendo os beiços, das pessoas apressadas, do barulho de gente. Entraram em uma condução por uma porta que abria para o lado, e novamente Miguel, do colo da mãe, colou-se na janela, porque havia tanta coisa para ver naquela Capital.
Ali foi a primeira vez que viu o lago que era o mar. Um dia haveria de contar para seu filho sobre aquela época em que a esperança o consumia, sobre quando vislumbrou aquele sem fim de água, o brilho do Sol, esplêndido, um barco solitário que pairava no horizonte. Estavam atravessando uma ponte enorme rumo à nova vida que o esperava do outro lado, e, ali, o lago poderia ser mar, e ele poderia ser tudo que imaginasse.
carai, até entrei na máteria pra ver esse lance e fiquei de cara que já tinha planos desde 1808! todo dia a gente aprende uma coisa nova mesmo.
Eu lembro dessa história sobre o lago: " À época, havia quem pensasse que a obra do Lago não se concretizaria. O colunista Gustavo Corção, do jornal O Globo, não acreditava que, por conta do terreno arenoso do planalto central, o lago encheria. Entretanto, dia 12 de setembro de 1959, no dia do aniversário do Presidente, fez-se a inauguração da barragem. Oito meses depois, assim que o lago atingiu a famosa cota mil, o colunista recebeu uma mensagem via telegrama bem humorada do Presidente Juscelino Kubitschek: “Encheu, viu?” "