Existem alguns recantos da internet que eu evito frequentar. O Twitter, aquela floresta de aves de rapina, onde os monstros saem da toca ( principalmente de madrugada) é um deles. Mas foi por lá que começou, esta semana, uma polêmica ligada à comida, o #SwedenGate.
Recebi algumas mensagens e imagens sobre isso. Parece que alguém começou perguntando qual foi a experiência de choque cultural mais intensa que já vivenciou, e a pessoa conta que, quando era criança e foi brincar na casa de um coleguinha sueco, a mãe do menino chamou o filho para comer. A criança então avisou para o visitante ficar no quarto e esperar enquanto ele ia jantar com a família.
A cena parece mesmo impensável para padrões brasileiros, mas parece que essa questão de não dividir comida ou oferecer refeições quando não se tem ainda uma intimidade é relativamente comum nos países escandinavos.
Eu não conheço nenhuma pessoa sueca que possa dar uma visão nativa sobre essas tradições. Aliás, a melhor coisa que posso falar sobre aquele país é a dupla musical das irmãs Söderberg, cujo projeto, First Aid Kit, é uma das minhas bandas preferidas. E, pensando agora, são mínimas as menções à comida nas letras em inglês.
Mas, talvez, o fato de não existir uma comida típica daquele país que seja alegremente reproduzida pelo mundo (pense, sei lá, numa pizza, num sushi) já nos dá alguma pista sobre os costumes gastronômicos.
Essa história rendeu vários relatos, explicações históricas ligando o protestantismo a alguns países europeus, memes, e, claro, comparações com o Brasil, especialmente com Minas Gerais, onde a comida é sinônimo de hospitalidade.
Mas generalizar pode ser uma armadilha quando tentamos compreender o outro.
E, da mesma forma que nem o Brasil, nem mesmo um único estado é um só, essa noção de "europeus" como um tipo de gente só é muito complicada. Uma recente experiência cinematográfica sofrível me fez refletir sobre isso.
Dinamarca x Itália
No filme Toscana, conhecemos a história de um chef dinamarquês dos mais metidos a besta, que monta pratos belíssimos, com porções pequenas, dá um chilique na cozinha chique e afasta um possível investidor que "não entende" a arte dele.
O moço, Theo, recebe a notícia de que seu pai, que também era cozinheiro, morre na Itália, deixando uma propriedade de herança.
Ele então viaja, a contragosto, para a Toscana a fim de vender o negócio de seu pai. Lá, ele acaba conhecendo uma mulher , Sophia. Fica implicando com ela, reclamando da comida, até claro o jogo virar, ele se interessar romanticamente por ela, começarem a cozinhar e passear de Vespa juntos, etc.
Poderia ser um desses filmes gostosos de ver, até tem as paisagens bonitas e uma música do Roberto Carlos na trilha sonora, mas a coisa desanda de um jeito. Nenhum prato parece suculento, não existe química nesse par, a gente descobre que ela está noiva de outro, os flashbacks para a infância de Theo são insuficientes para que o espectador descubra porque diabos ele tinha uma picuinha com o pai.
Mas talvez o que tenha mais me decepcionado neste filme é um personagem dinamarquês capaz de desprezar e querer dar as cartas em uma cozinha italiana na região da Toscana, tão rica em ingredientes locais e na produção de vinhos renomados.
Parece que não importa em que parte do globo, tem sempre alguém querendo subjugar o outro, e a comida, assim como outros elementos culturais, é uma grande ferramenta civilizatória.
Não é de bom tom, digamos assim, meter o bedelho na mesa dos outros. Como o outro come é fruto de tantas variáveis, de tanta história, de fartura ou de falta, de guerras, doenças, de migrações.
Acho que todos ganhamos mais quando nos colocamos à disposição de conhecer o outro, o tal do “prova primeiro" que antecede os sabores que moldam nosso paladar e visão de mundo.
Cate por aí
Pensar sobre o #SwedenGate me deu curiosidade de saber o que se come naquele país, e encontrei algumas referências, como esse artigo da BBC Good Food ( em inglês) sobre 10 pratos para provar na Suécia.
Formiguinhas suecas
No site oficial do governo sueco, esse artigo conta sobre tradições ligadas à comida no país. Os Kanelbullens, espécie de pãozinho de canela, são celebrados no dia 4 de outubro.
Os waffles (våfflor) são consumidos em 25 de março e os bolos de esponja cremosos decorados com chocolate ou maçapão silhuetas do rei Gustav II Adolf (Gustav Adolfs-bakelse) em 6 de novembro em memória do monarca sueco que foi morto neste dia em 1632 na Batalha de Lützen.
Além disso, os suecos parecem ser verdadeiras formiguinhas. Em média, uma pessoa naquele país consome 17 quilos de doce por ano, tendo um costume de escolher doces no fim da sexta-feira (Fredagsmys).A palavra Lördagsgodis designa os “sábados de doce".
Na década de 1940, o governo sueco realizou estudos sobre os efeitos de cárie dentária do excesso de açúcar (estudos que eram antiéticos e realizados em pacientes de asilo com doença mental, deve-se notar). O governo então pediu às pessoas que reduzissem a ingestão de açúcar e reduzissem o consumo de doces a um dia por semana. E assim nasceu Lördagsgodis.
Mas, assim, talvez se você estiver passeando pela Suécia num sábado, não vai ter muita gente pra te oferecer um docinho.
Achei que valia uma atualização: Esse artigo na Refinery29(em inglês) escrito por uma mulher negra que teve a experiência de morar na Suécia quando fez seu mestrado me deu uma visão mais ampla sobre o #Swedengate. Vale a leitura, inclusive com os relatos de outros estrangeiros que por lá fizeram morada.
Também sou fã de First Aid Kit!