É outono. Ainda que tentemos negar, uma fina friaca começa a surgir de manhãzinha e, quando a noite se instala, temos um sereno que pede jaqueta por cima dos ombros, uma xícara de chá, um abraço que não precisamos pedir, um gato que pula no colo e nos aquece aos poucos.
Mesmo que não esteja escrito em nenhum lugar, nesta época, as pessoas costumam fazer podas; cortes de cabelo, barbas aparadas, arrumações.
Podas. Nunca fui muito boa nelas, mas reconheço sua importância, muito embora. Muito embora. É difícil cortar o que, naquele momento, ainda parece bom, bonito, viável. Faz parte, no entanto, da sabedoria de se preparar para o inverno, ainda que em sua versão amena dos trópicos.
Há algumas semanas, cheguei tarde demais no jardim da minha mãe. Zeca, o jardineiro, tinha acabado de cumprir ordens; desbastou em menos de meia hora os mais de dez arbustos de lavanda do pequeno canteiro que eu apelidava de Provance do Cerrado.
Diante da terra exposta, eu, humana, não era a primeira, nem a única, a lamentar. Ruddy, o gato marrento, perdera seu canto de soneca, protegido e aromatizado. As abelhas, frequentadoras das flores arroxeadas, zanzavam, bravas, buscando recolher o que sobrou do pólen, o rastro do perfume ainda no ar. Também foram desabrigados os pequenos louva-a-deus, verdinhos que só, que se camuflavam por ali, dependurados nos longos filetes da lavanda, espreitando besouros e joaninhas que apareciam por lá.
Poda, neste caso, seria a única opção?
Era necessário, mesmo, arrancar raízes e tudo o mais? Substituir os vicejantes arbustos pelas plantas jovens, inexperientes, que terão um longo caminho para crescer no inverno, sabe-se lá se conseguirão explodir-se em flores cheirosas até o próximo setembro.
Zeca levanta os braços, gesticula mas pouco fala, é um mestre das monossílabas. Sua mãe mandou. Me lembro do ditado latino-americano bem sabido: Contra toda la autoridad, menos mi mamá. É, afinal, o jardim dela.
Jardim esse que, para qualquer modificação, inclusão ou exclusão, é preciso um processo longo, dispendioso, negociatas que deixariam no chinelo membros do alto escalão das Nações Unidas.
Faz uma década que consegui minha última - se não minha única- vitória nesse sentido. Era meu aniversário, e minha amiga Fabiane, cansada de ouvir minhas lamúrias sobre a dificuldade de achar e o preço proibitivo do limão siciliano, resolveu me dar uma muda enxertada desta variedade que é a mais comum lá pras bandas do norte global.
Pode não parecer, agora, mas o tal cítrico amarelinho era raro nos mercados, feiras e empórios da capital. Eu os desejava ardentemente, pois eram figurinha carimbada nas receitas dos inglesinhos que apareciam nos programas de TV que eu devorava.
Com legendas que mal acompanhavam sua fala acelerada, Jamie Oliver, o naked chef, resolvia qualquer desequilíbrio, qualquer falta de tempero, qualquer dúvida culinária com raspas e suco do limão amarelo, azeite de oliva, sal e pimenta preta moída na hora.
Sua conterrânea, Nigella Lawson, infinitamente mais suave na fala e nos gestos, também enfiava as raspinhas em tudo, dos bolinhos assados com blueberry (outro ingrediente raríssimo naqueles tempos), passando pelo linguini com muita salsinha aos drinks.
Engraçado que talvez tenha sido justamente um desses coquetéis, o mais simplório e popular no Reino Unido, Gin Tônica, o responsável pelo aumento de demanda e consequente oferta de limão siciliano em território tupiniquim.
Mas, até então, plantar era a solução (pra tanta coisa, ainda é, não é?...) e negociei um lugarzinho nos fundos, próximo ao muro, ali não haveria de incomodar ninguém.
Daria frutos, todo mundo poderia aproveitar em um futuro de desenho animado onde o personagem faz uma banquinha e oferece limonada por fifty cents o copo, as bolotas cítricas caindo aos montes, as cascas reluzentes prontas para perfumar toda sorte de receitas.
A ironia? Eu estaria longe, no tempo e no espaço, quando aquele pé de limão começasse a dispensar de boa vontade seus frutos.
Mas voltamos ao passado mais próximo. É outono, e eu estou ali, naquele jardim. E elas estão ali, as lavandas, no chão, à caminho do descarte. E, porque sou dramática, porque odeio podas e finais, resolvi reagir.
Tesoura em mãos, fui pedindo licença para as últimas abelhas insistentes e cortando as pontas de lavanda, os tufos com flores no final. Depois, busquei linha de algodão e me senti a mais antiga das mulheres, a anciã que vive numa choupana na floresta, amarrando ervas prontas para secar.
Um, dois, três, até chegar em oito ramos amarrados, um bondage vegetal, para quem gosta dessas coisas. Ofertei um para Zeca, com instruções: pendure em casa, num lugar fresco, sem sol. Acenda só quando estiver seco.
Não satisfeita, separei as derradeiras florzinhas, as mais lilases, direto para um pote de vidro, completo até a tampa com açúcar de confeiteiro. Em um post-it, escrevi instruções que são o avesso daquelas encontradas por Alice no país das Maravilhas: não coma.
E então, fui viver, dançar, ver gente jovem reunida, ler poemas, escrever e-mails, cozinhar arroz, rezar terços.
E, num belo dia, senti que era hora. E reuni a vontade e os ingredientes, inclusive um limão siciliano do pé, para fazer a receita que não poderia faltar neste pequeno restaurante fictício que vos recebe.
Madeleines, ou, em bom brasileiro, madalenas. Famosas na literatura, são um tipo de bolinho amanteigado francês em formato, isso mesmo, de concha.
Foi experimentando um desses, mergulhado em uma xícara de chá, no ano de 1909, que o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) diz ter tido uma longa e involuntária lembrança de sua infância.
Esse conceito transformou-se na expressão da língua francesa madeleine de proust, usada no sentido figurado para designar a impressão de reminiscência e memória causada por um objeto, um detalhe, um cheiro, etc.
A partir desta memória involuntária, Proust decide escrever o romance Em Busca do Tempo Perdido, considerada uma das maiores obras-primas do século XX. São sete volumes, 2472 páginas, 9 609 000 caracteres, contando os espaços entre as letras, notavelmente o romance mais longo do mundo. Eu li? Não li. Pretendo? Com certeza.
Mas, por agora, vamos ficar com os incensos e com as madalenas, ambos perfumados e profundamente afetados pelo passar do tempo. Não é sempre que eu consigo transformar negativo - a poda - em positivo, mas, dessa vez, acho que foi isso, foi bem isso, sim.
Madalenas de limão siciliano e lavanda
Você vai precisar, principalmente, de uma forma própria para madeleines, e eu recomendo as de metal antiaderentes.
Um aviso: esta não é uma receita tradicional, considerando que não faço tempo de espera na geladeira, não uso fermento algum, mas garanto que elas saem com o calombo esperado.
E, pra completar a rebeldia, troco uma parte do açúcar branco por mascavo, para que não fiquem tão branquelas as conchinhas. Sinto que os franceses aprovariam, no entanto, um uso exacerbado de manteiga, boa e sem sal. :)
Ingredientes
Para untar a forma:
1 colher de sopa de manteiga sem sal
1 colher e 1/2 de farinha de trigo comum
Para a massa
10 colheres de sopa de manteiga sem sal ( 140g)
2 ovos médios em temperatura ambiente
1/2 xícara de açúcar granulado
3 colheres de sopa de açúcar mascavo
1 colher de sobremesa de sal ( uma pitada, mas generosa)
1 xícara e 1/4 de farinha de trigo comum
Extrato de baunilha ( à vontade)
Raspas de limão siciliano ( à vontade)
Açúcar de lavanda para finalizar ( à vontade)
Modo de fazer
Pré-aqueça o forno a 190 °C e faça a misturinha para untar a forma com a manteiga derretida e 1 ½ colher de chá de farinha. Use um pincel ou pano limpo para untar levemente, mas completamente, todas as cavidades da sua forma de madalena.
Em uma panelinha ou no microondas (mais fácil, mas cuidado) derreta a manteiga para a massa e deixe esfriar. Em uma tigela grande o suficiente, misture os ovos, o açúcar granulando e o mascavo, sal, e o extrato de baunilha se for usar. É rapidinho, e, se tiver um fuet, melhor ainda.
Começa a adicionar a farinha de trigo nesta mistura, mas com calma e gentileza, um pouco de cada vez, até que toda a farinha esteja incorporada na massa. Agora, é a vez de regar a manteiga derretida, mas que teve seu tempo de resfriar, ao redor da borda da massa.
Também é agora que entram as raspas de limão siciliano, mas cuidado para não raspar a parte branca, que pode amargar as coisas. Vá dobrando a massa, usando uma espátula, sem pressa, até que os ingredientes estejam bem combinados, sem bater muito. A textura, neste ponto, lembra um doce de leite lindão.
Basta encher cada cavidade com uma colher de sopa de massa e assar por mais ou menos 11 minutos ou até que estejam douradas. Se você só tiver uma forma ( é o meu caso!) o ideal é deixar esfriar, lavar, untar e repetir com o restante da massa.
Com as madalenas ainda quentes, é hora de salpicar com o açúcar de lavanda, fazer um café ou chá, chamar as pessoas queridas e alegremente compartilhar lembranças de uma infância bem vivida.
Que quentinho gostoso o clima dessa news ♡♡♡ Matheus Habib, corre aqui!!!
que delícia de texto e de receita ❤️