Bem vindos ao Conchas, esse restaurante imaginário que recebe sua visita aos domingos. Hoje, a segunda parte de Florida, uma pequena ficção para celebrar a chegada de uma nova estação. Você pode ler a primeira parte aqui. Um pequeno aviso: essa edição é para adultos. 🌶
Para ler ouvindo “O verão” na interpretação de Max Richter para As Quatro Estações, de Vivaldi. ( Spotify/ Youtube)
Quanto tempo passou desde que esteve do lado de fora daquele salão? Talvez uma semana? Talvez mais. O tempo se esticara como a massa da bala de goma que a tia repuxava no interior.Quanto tempo não pensava nela, não mastigava um doce de estalar as gengivas?
O vinho e a comida a deixaram mais desperta, as lembranças de outros cheiros iam chegando, a fome despertando. Ia chamar o garçom, mas não foi preciso: ele vinha vindo com o prato principal protegido por um cloche metálico. Com precisão e deferência, ele levantou aquela redoma, revelando o pássaro delicado.
Ela quase não podia acreditar na minúscula ave que repousava ali. Uma codorna! A pele crocante e dourada, os aromas de manteiga e alho e alguma coisa de flor. Cortou um pedacinho, revelando um recheio úmido. Comeu e descobriu; rosas. Além de castanhas portuguesas, anis, mel. Embaixo da codorninha, uma cama de purê púrpura como um veludo e com a mesma textura. Batata roxa. E doce.
Intercalando com os goles fugazes do vinho, os sabores bailavam, a língua alerta, os cinco sentidos despertos, aquela sensação que serpenteava, desenrolando-se da base da coluna, passando pelo estômago, pelo coração, para a garganta. Estou viva, pensou. Muito viva!
Abaixou os talheres. Com a ponta dos dedos, buscou os ossos diminutos, levou-os aos lábios. Primitiva, descendente da primeira mulher do mundo, ela mordeu e chupou e arrancou a pele, fartando-se toda, alheia a qualquer entorno, entregue.
Apenas um pensamento a arrancou daquele torpor: onde estavam aqueles olhos? Se já tinha provado aquele deleite, como podiam ainda conservar tanta melancolia? Como podia não se dar conta?
Deu o gole final no vinho. Tremia um pouco, o calor da bebida tomava conta do pescoço e enrubescia as têmporas.Decidiu ir ao banheiro. Lavou as mãos, respingando gotinhas de água no rosto.Se olhou no espelho, satisfeita, demorando-se a vista nos próprios contornos. Passou um batom e caminhou lentamente de volta para o seu lugar, agora o único ocupado no restaurante.
Uma taça de cristal lapidado, com a aba larga e o líquido borbulhante repousava ao lado de um cumbuca delicada, de cerâmica esbranquiçada. Era o final?
Ao se aproximar, as pérolas negras brilharam, um espelho dos olhos dela. Jabuticabas.Frescas. As primeiras da estação. Na mesma temperatura das mãos que avançavam. Um gole de espumante, um estourar de cascas, estrelas e supernovas no céu da boca.
E foi como um desses estouros que ela soube. Levantou-se, tomou o derradeiro gole, depositando a taça delicadamente na mesa.
O casaco vermelho repousava nas costas da cadeira, e o vestido teve o mesmo destino. Calcinha e sutiã ficaram no assento, e só as botas marrons e as meias amarelas embaixo. Caminhando serenamente, passou pelo corredor e transpôs a porta, adentrando a cozinha, onde aqueles olhos a esperavam.
Que bonito! Li ouvindo a música que indicou, me pareceu um curta-metragem. :)
Por incrível q pareça tive a mesma sensação da Paula...rs
Li ouvindo a musica, que prazer, me senti num filme. Grata pelo presente em forma de texto e música