Sejam bem vindos ao Conchas! Abrimos hoje para o jantar, um banquete em duas partes. Porque um restaurante, ainda que imaginário (especialmente um desses!) pode ser o cenário para o desabrochar de uma nova estação. Recomendo com ênfase a harmonização musical para esta leitura. Que lo disfrute!
“Hasta te creo dueña del universo. Te traeré de las montañas flores alegres, copihues, avellanas oscuras, y cestas silvestres de besos. Quiero hacer contigo lo que la primavera hace con los cerezos.”- Pablo Neruda
Para ler ouvindo “A primavera” na interpretação de Max Richter para As Quatro Estações, de Vivaldi. ( Spotify/ Youtube)
Apressada, ela passa pela vitrine a primeira vez sem olhar. Depois voltou, lenta, para ver o que tinha sido um borrão na noite cinza.
O interior do restaurante está quase vazio, duas mesas ocupadas, uma delas por um senhorzinho com ares de tartaruga, a tez repuxada, os bolsões embaixo dos olhos, a áurea de senhor Miyagi depois de algumas doses de saquê. Na outra mesa um casal jovem, belo e plástico, que não conversa, mas encara cada qual sua tela brilhante.
Ela passaria pela terceira vez sem entrar, se a porta não tivesse sido aberta, e se lá de dentro, não soprasse um aroma de flores frescas, vivíssimas, pendentes de um arranjo no aparador da entrada.
Vamos jantar? Convida o moço vestido de preto, comprido que só, cardápio em mãos, pés juntos, ombros largos e arqueados.
Ela ainda pensa em seguir caminho, mas não pode. São os olhos dele. Eles contêm uma tristeza infinita.Inabalável. Como se alguma coisa de muito ruim tivesse acontecido muito cedo e, desde então e mesmo agora, nada que acontecesse de bom pudesse compensar e remover a mancha da melancolia na superfície daqueles olhos.
A cor, um fundo de lago depois de chuva, também reforça a lástima de um inverno prolongado. Ela desvia o olhar, ressabiada.
Ele a conduz para uma mesa. Ela se senta. Nenhuma pergunta sobre número de pessoas, se ela espera por alguém, nada disso. Não deixa de ser um alívio.
Ele recita pratos e preparos do dia em tom cortês, digno de um trovador medieval. Ela se desliga totalmente do quê ele diz, ouvindo apenas o timbre daquela voz, a pronúncia pausada, quase como de quem aprendeu português como uma segunda língua, sem ter ao certo uma primeira.
Constrangida por não fazer ideia do que foi dito, pergunta o que ele indica, e aceita sem restrições as escolhas daquele desconhecido. Ele assente com a cabeça, e se retira.
É uma chance de olhar ao redor. O velho continua ali, diante de uma porção de bolinhos fritos. Mastiga um deles lentamente, como quem perdeu a intimidade com os dentes.
O casal também segue sem se falar, cada qual em sua tela, uma salada de folhas verdes e tomatinhos amarelos intocada, dois copos com água com gás, um copinho com limão espremido.
O cheiro da cozinha lembra refogado de alho e cebola e mais alguma coisa que ela não consegue adivinhar. Talvez seja salsão. Ou cenoura. Alguma coisa assim, que pode virar sopa. Como se materializada pelo pensamento, uma cumbuca fumegante aparece na frente dela, enfeitada por uma pequena capuchinha alaranjada.
O garçom, que não é o moço de olhos tristes, deposita um moedor de pimentas, sal e azeite. Volta com uma jarra de vidro e um copo: água, a maior das gentilezas, e também a mais básica.
Ela inspeciona o conteúdo da tigela. Uma louça tão bonita, cor de areia, preenchida pelo líquido de cor terracota que dá pistas mas não conta tudo.
É nas colheradas que se percebe tantas camadas; cebola, salsão, cenoura, tomates, abóbora. Mas também tomilho, e manjericão e sálvia. E alguma coisa inominável, mas presente, quase como uma ausência. Uma saudade, até.
E ela acrescenta o azeite que cai em um fio contínuo, esverdeado e turvo, que amálgama tudo. A comensal desavisada não tinha ideia de tinha fome até vislumbrar o fundo da cumbuca. O casal da mesa ao lado de olhou quando chegou o segundo prato, uma espécie de lasanha, e a mulher fotografou a mesa, e depois seu acompanhante, e depois virou o aparelho para fotografar a si e ele - uma selfie - em que sorriam. Assim que a foto estava pronta, os sorrisos se desmancharam e o moço começou a se servir da massa sem olhar para os lados. Nem para a frente.
Na mesa do velho, um bife alto rodeado por batatas coradas desafiava a mastigação lenta, mas a expressão plácida indicava a total absorção no nhec nhec da dilaceração das fibras, intercalado com a maciez reconfortante das batatinhas cálidas.
O garçom voltou com um prato com duas fatias de pão rústico, as cascas grossas, o miolo escuro e perfumado, quente e tostado. Ela mordiscou a primeira, regando-a com mais daquele azeite esplêndido, e usou a segunda para absorver as reminiscências do caldo. Dali a pouco volta o garçom com uma taça e uma garrafa sem rótulo, nua e misteriosa.
Ela quer intervir, dizer que não pediu e que nem é apropriado, mas ele balança a cabeça enquanto as mãos ágeis debulhando a rolha em um único movimento silencioso.
Diz se tratar de uma cortesia da casa, e entorna o líquido, que cai em uma cascata brilhante, límpida, avermelhada, de um translúcido tom de cereja.
Ela leva a taça ao nariz; morangos, acerolas e jabuticabas surgem na memória, bem como um improvável buquê de flores que antecedem as frutas. O sabor é bom, mas fugidio; cada gole chama o próximo, em uma dança entre acidez, doçura e impermanência.
Não sabe bem o porque, mas imagina que foi o moço que a recebeu na porta - onde ele estava?- que providenciou o vinho, e sentiu uma vontade de brindar com ele.
Ler o texto com o áudio, faz toda a diferença! Que presente, fui levada para o momento <3