Então é Natal. E são quase três anos desde o dia em que a Terra parou. Talvez você, como eu, tenha alimentado esperanças de que chegaríamos melhores neste outro lado do tempo. Talvez você seja mais realista do que eu.
Mas se hoje eu estou aqui, de pé na porta do Conchas e pano de prato no ombro, é porque eu gostaria de direcionar minha energia de escritora, o ímpeto de cozinheira e a força de mulher para nutrir aqueles outros.
Mas, aqueles outros, quem?
Os solitários.Os reféns do fantasma dos natais passados, aqueles que foram visitados pelo espírito do natal futuro e que terão, no presente, a chance de renascer e fazer novas escolhas.
Os vigias. As enfermeiras, médicos, bombeiros, socorristas, plantonistas de toda ordem, aqueles que precisam estar sóbrios para lidar com os excessos da época.
Os garis cantando enquanto recolhem os embrulhos e embalagens, as moças cheias de sonhos que passaram na esteira não sei quantos pacotes de compras, que ficaram dias e noites nas luzes ofuscantes, brancas e artificiais dos shopping center para bater metas, para bancar aqueles sonhos.
Queria abraçar as mulheres, mamas Africa, que além de fazer mamadeira e cozinhar a ceia para a patroa, vai pra casa só, no último ônibus, para descer no último ponto da linha e dormir, talvez com fome.
Gostaria de servir um copo de vinho para as pessoas em situação de rua e um suco de manga madura para as criancinhas que, mesmo morando em ocupações e dormindo embaixo de tendas negras, enfeitam arvorezinhas e, quem sabe, sonham com o mar.
Queria cozinhar arroz o suficiente para alimentar esperanças, para sarar o desespero dos aflitos, para acalentar as mãezinhas que, nesta data, passaram a noite em claro, enxergando seus filhos tão frágeis através do vidro, lutando. Para as mães cheias de culpa que sentiram a ausência dos filhos encarcerados, para as enlutadas, desesperadas de saudade, que não saberão nunca o que é a justiça.
Queria levar e repartir meu pão com as moças que atendem e atenderam esta noite as chamadas no CVV; aos voluntários no mundo inteiro que, nesta época do ano, nesta economia, doaram tempo e esforços e às vezes dinheiro do próprio bolso para cozinhar, servir, doar.
Eu sou grata pela vida de vocês. Eu vejo vocês.
Não existe abundância verdadeira fora do coletivo. Leia novamente.
Qualquer ideia de que é possível obter sucesso individual é apenas uma ilusão. Receber é tão bom, justo, válido e necessário quanto dar.
Posso ter mil implicâncias e reticências e argumentos sobre a forma como esta data comercial é posta. Trabalho não remunerado tido como afeto é apenas um dos vários aspectos problemáticos.
Mas eu não vou falar disso, prefiro focar no homenageado do dia, uma personalidade verdadeiramente ilustre. Tanto que sua luz riscou o céu escuro deste planeta há mais de dois mil anos e seguimos falando seu nome e lendo e, com sorte, vivendo em suas palavras.
A mensagem de Jesus, ou Yeshua, é simples, mas complexa. Me parece que a humanidade ainda vai demorar para processar, integrar e ressoar.
Amai-vos uns aos outros.
Ao próximo, como a ti mesmo.
Amar é caminho, vida, lição e missão. Tudo é sobre o amor. Até a corrida em círculos, as pessoas apressadas, as formigas tentando se proteger da chuva, as compras e listas e presentes e dívidas adquiridas. Tudo é dor e toda dor vem do desejo de não sentirmos dor.
Essa pressão vem da necessidade tão humana de pertencer. De ser parte de algo maior, de estar em comunhão, de ser incluído.
Mas eu trago boas novas: você já é. Você faz parte dos comensais (da vida!) do Conchas e eu sou grata pela sua presença e existência. Você já pertence!
Eu e você e todo mundo que a gente conhece e quem ainda vamos conhecer e reconhecer, e até os outros. Estamos entrelaçados, conectados, interligados. Somos unidade. Cada vez que alguém se recorda disso, é Natal, nasce uma consciência. Você só precisa lembrar. Você consegue.
Estamos aqui para treinar esse amor incondicional, embora esse lugar imponha tanta, mas tanta condição mesmo para a gente amar.
Que as barreiras, principalmente internas, possam ruir. E que os lugares à mesa aumentem, e a gente possa servir um banquete oferecendo o nosso melhor. Amém!
Obrigado por escrever o que estava entalado em mim sem eu nem saber <3