
Na primeira vez que eu cozinho para você, é bem provável que seja uma refeição coletiva; um grupo de amigos, ou colegas de trabalho, voluntários de uma cozinha. Pode ser que seja aniversário de alguém e eu, mais uma vez, preparo e levo algum quitute ridiculamente requintado para a ocasião.
Você prova a comida e seu olhar vai do prato para mim, com admiração ou surpresa. Depende do contexto anterior; não sabia que você cozinhava. Ou, sabia sim, mas provar é melhor que ouvir sobre comida, não é mesmo?
Eu acho.
A segunda vez que cozinho para você não é por acaso; te levo uma oferenda comestível. Uma fatia de bolo de maçã, pães de queijo fresquinhos, alguma coisa delicada e indefectivelmente afetuosa. Quero que saiba que, sim, fiz pensando em você, e me deleito ao te observar comendo. Você sorri, eu sorrio.
A terceira vez que cozinho para você é minha preferida: significa que a casa está com a faxina em dia, que as lufadas de incenso de rosas e de refogado bailam pelo ar, e que o menu é uma brincadeira, uma provocação, um flerte em etapas, com direito à danças no corredor entre pia e fogão. Significa que eu fiz feira, a geladeira está cheia de pequenas preparações, que vou te convidar a provar o molho antes de servir; é possível que seja macarrão; afinal, venho de uma família carboafetiva.
Depois desse dia, se você é uma nova amizade, você pode passar a ser uma amiga para quem eu ligaria sem aviso prévio para falar sobre sensações descompassadas. Se você é um interesse amoroso, é possível que se torne algo a mais…
É preciso estabelecer uma palavra, um verbo que seja, para o ato de compartilhar algo que cozinhei especialmente para você. Talvez seja o ato mais íntimo que tenhamos juntos: dividir uma refeição e seus silêncios, seus murmúrios, aquele fechar dos olhos e jogar para trás de cabeça, o gesto dos satisfeitos, dos remediados das fomes todas.
Na quarta vez, eu finjo que deixo você cozinhar para mim. É um aprendizado sempre em movimento, este: aprender a receber e a não intervir.
No hinduísmo, a Prasada é o alimento preparado com amor e devoção, livre de sofrimento, que é primeiro oferecido às divindades e, depois, compartilhado entre discípulos. Um professor - ou guru - rigoroso pode muito bem escolher para você qual será o seu alimento; não importa que você prefira uva, ora, ele vai te oferecer manga, não é tudo amor e benção?
Essa possibilidade de ter alguém escolhendo o que vou comer é desconcertante, veja como são as coisas. A gente diz ter fome de amor, mas, quando ele é oferecido de bandeja, será que conseguimos estender a mão? Será, também, que no meio do serviço volante, ou do bufê de possibilidades, vamos saber reconhecer o que é — e quem é — pra gente?
Desta vez, você se reveza entre as panelas; ou talvez observe com ansiedade a moto que se desloca lenta no mapa brilhante na tela do celular; quem sabe, esquenta pacotinhos á vácuo em água borbulhante ou coloca uma lasanha pronta no forno. Não sei qual vai ser o caso e me observo no desejo de fortalecer uma suspensão de expectativas.
Você vê, sou uma controladora em remissão, mas é sábio observar qualquer sintoma de recaída. Não vou criticar seu jeito de cortar os legumes, mas não prometo ficar totalmente impassível, meu rosto me trai, com menos frequência agora, mas ainda assim. Me colocarei em uma distância segura, propícia a observar seus movimentos; como você escolhe nutrir seus afetos, eu me pergunto. O que vai ser servido à mim, que tenho sirvo tanto?
Na última vez que cozinho para você, espero que eu não saiba que é a última.
Eu torço para que seja uma refeição fora de hora; frutas cortadas de madrugada, servidas direto na boca, doces e mornas como o dia que quer chegar.Ou um almojanta no meio da tardinha preguiçosa de um domingo, ou pipoca compartilhada na mesma cumbuca, servida no chão. Eu não sei se é a última ou a mais recente; eu não tenho como saber de antemão.
Um dia, dividiremos nossa última refeição, sem nos darmos conta. Todas as outras vezes, porém, eu te convido: preste atenção. No cheiro, no gosto, em como o seu corpo se porta ao lado de outro e no que está sendo servido.
Temos novidades neste mês de aniversário da Conchas!
A começar pela nova identidade visual, elaborada com carinho pela minha amiga pessoal e designer Luiza Folle. Gostaram?
Eu volto em breve com novas conchinhas.
Um beijo,
Amei o texto e a nova logo
Que texto mais lindo, Mari 💚