Quando alguém importante morre, é de praxe que um restaurante cerre as portas.
Então, além da tristeza, sentimos fome.
No primeiro domingo deste julho, nos despedimos da Mandy, nossa cachorrinha solar.
No fim, se tivermos sorte, viramos histórias. Essa é a dela.
— Não acredito que você comprou manga.
Minha irmã me ajudava a guardar as compras da semana. Dei de ombros, um gesto familiar, herdado do meu pai.
Eu compreendo. Estamos no inverno. Nunca compramos mangas. Nunca foi fruta que se compre; o verão sempre veio com a garantia da mangueira do quintal carregada, assim como as dos vizinhos, dos canteiros e parques, dos pântanos amarelos pela cidade inteira.
Mas, se tem uma coisa que eu entendi é que, do cardápio da vida, não podemos esperar muita coerência. Via de regra, não é um menu coeso e harmonizado que recebemos. Do alto de uma alegria de viver, uma perda.
No meio de felicidades clandestinas, tristezas cruas como cebolas. É assim.
Hoje! Hoje de sol e bruma,
com este silencioso calor sobre as pedras e as folhas! […]
Elegia - Cecilia Meirelles
O que a Gabi, minha irmã, não podia entender é que eu precisava muito, muito mesmo, trazer um pouco do verão pra esse inverno seco.
Para barganhar com a morte, para repetir um gesto agora impossível. Cortar a manga ao meio, abrir sulcos na polpa amarela, oferecer para Mandy e observar enquanto se esbaldava, o fucinho melado, o rabo em reviravoltas.
Não sei ao certo quando Mandy nasceu. Nem onde. É uma provável brasiliense. Ela foi trazida para a casa amarela em um dia comum.
Minha mãe saiu de um plantão e resolveu passar no comércio local para comprar pães. Voltou com uma cachorrinha marrom, de olhos cor de âmbar e um rabo acesso.
Escolhi o nome Mandy porque, na época, o cachorro da casa era o Billy, e me pareceu razoável ter as terríveis aventuras de Billy e Mandy como inspiração e, futuramente, acrescentar um gato preto magrelo, Puro-osso, no elenco animal da casa amarela.
Ademais, Mandy também é um diminutivo aceitável para mandioca, cuja casca terrosa era do tom dos pelos dela, dourados nas pontas.
O que me faz desejar tê-la levado para a praia. Não por ela, que iria preferir infinitamente ficar na areia quente, mas por mim, que quero sempre levar quem eu amo para perto das ondas, pro abraço da maresia, pra perto das conchas que fazem barulho de oceano.
Mandy jamais conheceu a maternidade canina. Era, ainda, indiferente as crianças humanas, adotando mais uma postura de neutralidade.
Nunca a flagrei tendo atitudes maternais com outros bichos e atribuo a sua longevidade em parte à ausência de preocupações com cachorrinhos.
Em compensação, quando Billy se foi, chegou Jack, o eterno molecote, um capirotinho em forma de cão, a perturbação contínua e insistente.
Mandy jamais latiu, mordeu ou rosnou - a não ser para Jack. Às vezes, uivava, reclamando seus direitos de desfrutar de um café da manhã digno.
Suas comidas preferidas eram cubos de mamão Formosa e de melão amarelo, gomos de laranjas e mexericas, rodelas de tomate e lascas de cenouras.
E, claro, as mangas, a que tinha livre acesso durante o verão.
Nos últimos anos, comia com gosto a ração molhada dos gatos, usufruindo dos privilégios da idade avançada, que nos deixava com a vista ainda mais grossa para seus cochilos no sofá,
Possuía uma dignidade austera e, mesmo na velhice, não se deixava flagrar nos momentos de alívio das necessidades fisiológicas.
Não era, de forma alguma, cachorra de colo, e essa situação era realmente rara, digna de registro.
Nas noites frias, se recolhia na sua casinha cheia de mantas. Menos uma vez em que, sabe se lá como, escapou. Quando demos pela falta, aquele chororô, percorremos várias ruas das quadras mais próximas, batendo de porta em porta, imaginando tragédias terríveis.
Era manhãzinha do dia seguinte, os cartazes de cão perdido estavam prontos, quando ouvimos seus uivos no portão. Voltou toda faceira, com os pelos remexidos, pedaços de folhas e gravetos, de alguma gandaia canina. Nunca mais tocamos no assunto.
Sua maior alegria era dormir ao Sol. Buscava a quentura das pedras do jardim, mudando de posição ao longo do dia, sempre em busca do calor, sem se dar conta de que era também fonte de luz. Aquecia e iluminava, ardia e alegrava qualquer um com sua fuça de ursinho de pelúcia.
Nas semanas desde que Mandy se foi, eu chorei.
Chorei dirigindo ao ver, na calçada, um senhor maltrapilho, o próprio arcano do Louco encarnado, seguido por um filhotinho de cachorro.
Chorei na escada rolante do shopping mais sofisticado da cidade porque uma mulher elegantíssima guiava ( ou era guiada?) por uma cachorra de pelos longos e marrons, coleira brilhante.
Chorei comendo os cubos de manga insossa e fria, em nada parecidas com as que ela sempre pode desfrutar.
Poderia ter dado mais conforto ou liberdade? Alegrias e petiscos? Passeios no Lago? Não sei. Desconheço o depois dos bichos. Fico aqui com a resposta das crianças, que imaginam sempre um céu de gramados verdejantes e ossinhos para os amigos peludos. Para Mandy, espero que seja um paraíso tropical, cheio de frutas, sol e água fresca.
em algum lugar do universo, Mandy leu essa cartinha e ficou feliz!
Que bonita homenagem para a Mandy ❤️ feliz que você conseguiu escrever