A estação de chuvas começou, enfim, no coração seco do Cerrado. Desacostumados que estamos, depois de mais de 150 dias de estiagem, não é incomum testemunhar duas aparições: os seres de açúcar e os loucos de chuva.
Os seres de açúcar, como o nome bem diz, são espécie de alfenim humano, mas muito mais frágil que o doce. Aliás, você conhece um alfenim?
A última vez que os vi foi na Cidade de Goiás, e faz tempo pois ainda se podia chamá-la de Goiás Velho sem nenhum prejuízo ou preconceito.
Lá, na terra da doceira e escritora Cora Coralina, são ( ou eram?) confeccionados com todo capricho, a partir de uma mistura de açúcar, água, suco de limão ou vinagre, às vezes clara de ovo.
Esquenta-se a mistura, na proporção que só quem é da lida sabe de olho, até chegar no ponto de bala.
A parte fascinante e francamente perigosa começa: com os dedos revestidos de polvilho, modela-se a massa, que vai adquirindo seu tom esbranquiçado. Tudo precisa acontecer com rapidez, para não perder o ponto, e não é incomum ver os formatos de pomba, chamadas de verônicas, na época da festa do Divino.
Mas também é possível moldar em outros formatos, como flores, e eu sempre tive para mim que Úrsula, a matriarca inabalável de Cem anos de solidão, fazia era alfenins em formato de bichinhos. Será?
Pois bem, então os seres de açúcar do Cerrado são meio como alfenins, que, depois de escaldar no calor, e terem a carapaça das almas moldadas pela poeira, terra vermelha, fuligem da temporada de incêndios.
Esse magma, ainda que pareça inabalável, torna-se uma espécie de personalidade da seca, uma carapaça que se veste por muitos meses, durante os quais se frequenta o Eixão fechado aos domingos para ouvir música ao vivo, para o terror dos idosos dos prédios.
Carrega-se na bolsa o kit com protetor solar, labial, repelente de insetos, garrafinha de água, e, no carro, as cadeirinhas dobráveis, a canga, o isopor a postos.
E então quando entorna o caldo celestial, os seres de açúcar…se recolhem. Cancelam planos, frustram convites, matam aula. Desaprenderam de certo a coexistir com a água, esse elemento das emoções, o elemento que sempre vence, até em pedra dura. Principalmente nela.
Amuados, já não podem lotar o Lago Paranoá de pranchas, canoas, pedalinhos nas primeiras horas do dia, nem lagartear nas beiradas das piscinas naturais da Água Mineral.
Tristes, veem a perda completa de sentido de se almoçar uma cuia de açaí, grande refeição de tantos dias secos.
Não arrastam mais os chinelos empoeirados, com medo de molhar os pés, de derreter, de se render.
Sim, mas e quem anseia pela chuva?
Quem enlouquece a partir de abril, e vai lentamente absorvendo a seca, rachando os lábios, os cotovelos e o juízo?
Quem ama respirar o cheiro de terra molhada passa muita vontade aqui por essas bandas.
E talvez justamente por sentir tanta saudade pelos meses que se arrastam cada vez mais secos, quando a chuva aparece, são os primeiros a pirar. Lelés da cuca, correm para os canteiros centrais e se deixam regar.
Dançam nas poças de água, ao som do forró imaginário, em plena praça do Cruzeiro, sob o olhar cúmplice de JK, que, tenho a impressão, também conservava o apreço pela chuva, dos tempos de menino em Diamantina, quando lançava barcos de papel que corriam na enxurrada, ladeira abaixo.
Os loucos de chuva não temem os raios e trovões. Quiça sejam todos filhos de Oyá. Tiram a roupa nos quintais das casas, entram em piscina em pleno temporal, alegres que só com a duplicidade da água.
Não pulam das poças, mas dentro delas. Tiram fotos em que os prédios monumentais da capital inventada estão refletidos em espelhos d'água. São aqueles que insistem na existência de sereias no Lago Paranoá, são aqueles capazes de trocar a pele da seca por uma elástica couraça anfíbia.
Os loucos de chuva passam pela estação com certa paz, e, quando for dezembro, serão os primeiros a receber com alegria os pântanos de manga e seus cheiros pungentes espalhados por todas as quadras do quadradinho.
E com esse yin-yang vamos sobrevivendo no centro de um país profundo, na capital de uma república estranha, nos circuitos de uma cidade quase incompreensível. E, em breve, chegam as cigarras, para bagunçar tudo.
“Pode incluir a gorjeta?”
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a chuva fez que vinha mas não veio...seguimos na fase do desespero hahahaha
saiu admirável duas vezes, não revisei o comentário...