Essa semana deu sopa, no almoço e no jantar, pra muita gente, com a onda de frio que deixou os dias gelados e as fomes apuradas.
Lembrei com carinho que foi justamente uma receita literária de sopa que me fez escrever esse texto há alguns anos, que foi uma retomada em um momento em que a vida criativa parecia descolada da minha realidade na época.
Hoje, sei que existe em mim essa paisagem interior, que se parece mesmo com uma cozinha onde também posso escrever na mesa enquanto arranco pedacinhos de pão, que deve ser preservado, com palavras e preparos.
Muita gente tem birra de sopa. É Nina Horta que escreve justamente sobre a Mafalda, a personagem do quadrinista Quino que notoriamente detesta sopa.
Nina a chama de burguesinha argentina, que negocia com a mãe, toma a sopa do dia apenas para chegar ao que interessa: os crepes de sobremesa.
A sopa é usada nas tirinhas como uma grande metáfora de tudo aquilo que nos obrigam a engolir goela abaixo, o que, na América Latina, vocês sabem, não é pouca coisa.
Mas, se existe esse caldo de associações negativas, comida de enfermos, sopão distribuído, lodo das prisões, o ato básico de preparar uma sopa me lembra da sofisticação humana em essência. Sim, porque para ter sopa é preciso ter um recipiente que a contenha, um artefato que nos conta sobre a perspicácia de nossos ancestrais.
Depois de descobrir o fogo, espetar carnes e fazer churrasco, o pessoal deve ter sentido falta de um caldinho e, para cozinhar cereais, valiam-se de carcaças de tartarugas e, isso mesmo, conchas de grandes moluscos para ir ao fogo. Coisa de 500 mil anos a.C.
Segundo Massimo Montanari e Jean Louis Flandrin , autores de História da Alimentação, foi só com o desenvolvimento da cerâmica, 20 mil anos a.C, que o cozimento de água fervente sob o fogo foi possível, e as primeiras sopas foram preparadas. Mas só chegamos nos caldeirões de bruxa medieval com a idade do metal, uns 3 mil anos a.C.
Como podem ver, foram muitas pedras que rolaram em sopas até chegarmos aqui, neste século, com gente usando panela elétrica para um cozido casual.
Sopa para Martin
O grande trunfo da sopa é fornecer conforto em forma de calor. É ir esquentando por dentro, por onde passa. É ser comida que precisa ser sorvida sem pressa, sob o risco de queimar a língua se estiver muito quente e perder a graça se tiver esfriado. A sopa é glória dos elementos água e fogo, que, aos poucos, transformam ingredientes numa nutritiva amálgama perfumada.
Tenho duas lembranças recentes de sopa. Há sete meses, minha prima Luiza trouxe ao mundo o Martin, um menininho alegre e forte, que já demonstra um apetite inabalável e uma curiosidade genuína por esse mundo.
No dia em que ele deu sinais de que queria chegar, eu comecei a cozinhar uma sopa, coisa simples, cebola, alho, cenoura, salsão, batatas, frango, cheiro verde e o poder dourado do açafrão da terra na minha panela azul piscina. Fiz sem pressa, refogando cada parte, pensando nela, desejando uma boa hora, amém.
Sopa pronta, bebê no mundo, levei um grande pote pra ela, que comeu de madrugada, inaugurando a nova rotina de puérpera.
A segunda lembrança, veja só, também fala de outro Martin, um menino educado e esperto, fã de David Bowie do alto dos seus seis anos. Ele é filho da minha amiga Soraya, com quem passei a última virada de ano.
Nosso pequeno grupo se reuniu em uma chácara, e, para honrar a tradição de ter lentilhas como um muito necessário bom agouro, fiz uma sopa. A ideia é que ela pudesse ser aquecida ao longo da madrugada se as comemorações se prolongassem, ou servisse como um interlúdio de almoço tardio do primeiro dia do ano novo.
Foi exatamente o que aconteceu; apesar dos outros acepipes, da seleção de vinhos, queijos e assados, a sopa, quem diria, reinou.E foi justamente o Martin que, depois de raspar o prato, veio até mim e agradeceu pela comida, de um jeito formal e fofo, como só as crianças sabem fazer.
Cate por aí
Salivo só de pensar na receita de um tipo de sopa que eu amo, a Minestrone, italiana, tem tomate e macarrão, essa versão do Jamie Oliver dá uma boa base para variações. Apesar de ser uma sopa de verão no país da bota, conseguimos bons resultados com tomate pelado em latas e nossa saborosa couve manteiga.
Saudemos, sempre, a mandioca. Esse tubérculo que tantas alegrias nos fornece em forma de farinhas e tapiocas também brilha ao conferir cremosidade ímpar em sopas e cozidos. Meu amigo Rodrigo publicou esse vídeo com uma variação de caldo verde que merece ser reproduzida aí na sua casa.
Até a próxima vez,
Gostou? Quer sugerir alguma coisa, mandar recado, pedir receita? Me escreve :)
Eu nunca voue esquecer da sopa deliciosa que eu comi no dia que o Martin chegou ao mundo! Obrigada prima por essa lembrança tão significativa! Amamos muito vc! Parabéns pelo texto! 🥹♥️