Dentes, janelas, mordidas, juízo
Tiradentes, maçãs, Beatles, Magritte e arte de procrastinar pesquisando tópicos obscuros
Olha eu,aqui, de novo. Essa coisa de frequência ainda vai me levar além, tomara.
No feriado que passou, fiquei pensando em Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que era, por ofício, dentista, e revolucionário por força das circunstâncias.
Patrono da odontologia brasileira, parece ter herdado o ofício do padrinho, e, além do mais, se metia com a manipulação de ervas a fim de apaziguar as dores de dente, de acordo com Rui Mourão,escritor mineiro que ocupou, por mais de quatro décadas, a cadeira de diretor do Museu da Inconfidência. Segundo ele, faz todo o sentido, afinal, Tiradentes ainda por cima era primo de primeiro grau de José Mariano da Conceição Velloso, imponente botânico da época que estudava a flora da mata atlântica.
Enfim.
Não sei se você também tem esses arroubos de curiosidade que te colocam em uma espiral que pode durar horas - ou dias - catando fatos sobre alguém, algum lugar ou alguma coisa.
Eu tenho.
Pode chamar de procrastinação bem intencionada, apuração desnecessária, o que for.
Mas, pra valer a viagem, rendeu uma crônica, menos mal.
Dentes, janelas, mordidas, juízo
Dentes. Essas misteriosas formações minerais, fósseis em vida. Do que exatamente são feitos os dentes? Não são puro osso, isso com certeza não. Com seu esmalte que só se mostra relevante quando se desgasta, sua polpa que carrega preciosas células dignas de congelamento compulsório e seus malabarismos de crescimento, os dentes são sementes de romã se espalhando pela fruta-gengiva da gente.
Dentes que, em algum momento, são de leite, amolecem tal qual os quadradinhos de doce (também de leite), até cederem, abrindo janelas de simpatia nas crianças. Não tem como não sorrir diante de uma garotinha meio bangela, admirada com o próprio vazio, a língua ali, diversas vezes repassando a lisura exposta.
Quando se consolidam os dentes perenes, a meu ver, é que começam as incongruências. Que eu me lembre, na escola, só queria usar aparelho quem não precisava usar aparelho. E quem, como eu, precisava usar, só queria uma coisa: comer maçãs. Não fatias, descascadas, não. Morder com gosto, encaixar-se na fruta, mil vezes Eva.
Quem está com a boca tomada por metal e borracha, eu te garanto, só pensa em maçã. Maçãs crespas de tão crocantes, nada de fruta insossa e esfarelenta, não. Uma maçã, assim, saída da capa do disco dos Beatles, tão madura quanto a que caiu na cabeça de Newton, tão ácida como aquela que ocupa a mente do filho do homem, de Magritte.
Uma coisa similar acontece no caso de quem precisa lidar com o surgimento importuno do dente de siso. Seria, ainda hoje, no sotaque do Norte, dente queiro, como escreveu Rachel de Queiroz em 1948?
Os sisos, ou um só, no singular, podem causar tanta dor que tudo em volta fica difuso, perde-se a fome, e é hora de extirpá-los. Anestesia, medo, bisturi, pontos, remédios, inchaço e a recomendação por líquidos, gélidos, leves. E quem tira siso, só quer o quê?
Crocância. Gordura. Proteína. O torresmo, aquele com carne e pele juntas, seria a perdição ideal dos órfãos de siso. Te juro.
Salutar, para a arcada dentária e, suspeito, para o resto do esqueleto, para a vida, no geral, é a alegria de querer exatamente o que mais se precisa e que, ainda por cima, é o que se pode ter no momento.É desejar suco de cajá na época do cajá maduro, querer viver de sorvete e picolé até que a gengiva acomode o luto dos terceiros molares, é desejar o que se pode ter, morder quando dá, assoprar, também, se for o caso.
Cate por aí
Consigo levar - ou trazer - qualquer tema para a questão da comida, fazer o quê. Mas tem gente que faz isso bem demais, porque viaja no tempo e no espaço e, portanto, na História, essa com H maior.
Trata-se de três historiadores que alimentam o Comer História, um projeto que esmiúça receitas, revira acervos de museus e apresenta muito conteúdo delicioso, como vídeos de receitas com a contextualização histórica sem ser maçante. Vale a pena acompanhar o perfil deles no Instagram, recheado com belíssimas ilustrações botânicas e fácsimiles de livros.
Para assistir (e ficar obcecada)
No espírito de ficar obcecada com tópicos obscuros, eu tenho a recomendação de um documentário que minha amiga Lozzi me apresentou: Strugle - a vida e a arte perdida de Szukalski.
Stanislaw Szukalski foi um artista, pintor, escultor, nascido na Polônia e que, aos 12 anos, escrevia num alfabeto que ele inventou ( sim, uma vibe meio menino do Acre). É uma dessas biografias insanas, cheia de contradições , extremamente intrigante.
A segunda temporada de Russian Doll chegou na Netflix e eu precisei rever a primeira. Admiro a capacidade de pensar em narrativas no tempo e espaço, e, além do mais, sou totalmente rendida para qualquer história que contenha viagem no tempo.
Nessa segunda temporada, visitamos junto com Nadia uma New York em 1982, e a estética toda me lembrou os vídeos fascinantes e melancólicos do Nelson Sullivan, que meu amigo Adonias me apresentou faz uns anos.
Ele foi um videomaker (e, talvez, um viajante do tempo) que viveu em NY e documentava seus amigos ( entre eles, RuPaul, sim do Drag Race) em vídeos feitos com uma câmera VHS super pesada. Os registros dessa vida cultural e de uma cultura queer são preciosos, e, por vezes, melancólicos. Enfim, dá para gastar um bom tempo entrando nesse buraco do coelho, se for o tipo de coisa que te interessa.
Sinto que fui longe até para os meus padrões, desculpa qualquer coisa, mas juro que está tudo conectado.
Até a próxima vez,
Gostou? Quer sugerir alguma coisa, mandar recado, pedir receita? Me escreve :)