Olá, sejam sempre muito bem vindas ao Conchas, esse restaurante literário que abre toda semana na sua caixa de e-mail! Via de regra, funcionamos aos domingos. Para quem está chegando agora, não se acanhe, pode arrastar cadeira, juntar mesa.
Nesse momento, estamos vivendo um verão chuvoso e francamente frio em várias regiões desse Brasil. Muita gente ainda não voltou, de fato, à rotina do que vai ser o próprio ano. Por aqui, seguimos abrindo as portas e fechando algumas janelas para não deixar o frio, o vento e o susto entrar e tomar conta.
Convido vocês para mais uma edição do Cine Conchas, dessa vez, do lado de dentro, no improviso, com tatame de EVA colorido no chão, cadeiras de meditação - a coluna agradece-, e, ao redor, almofadas, mantas e xales.
Nas mãos, copos de cerâmica, imperfeitamente belos, que contém um segredo, um mistério. Cacau, esse alimento sagrado, essa medicina ancestral, servido como aprendi; água pura, fervendo baixo as especiarias: cravo, canela, cardamomo, anis estrelado e pimenta síria.
Essa base perfumada precisa ainda de um tempero único: rezos. No masculino, por incrível que pareça. Rezos como palavras positivas, desejos bonitos que não tem a obrigação de acontecer, mas que energizam. Saúde. Equilíbrio. Clareza. Discernimento. Além disso, é especial que tenhamos as músicas adequadas, elevadas, cheias de tambores, sinos pequeninos, flautas, cítaras e instrumentos quase mágicos.
Snuj.Derbak.Kalimba.Agogo.Gong.Marimba.Xequerê.
Enquanto rezamos, pedindo tudo que vem de bom para os céus, as terras, os ares e o fogo, vamos raspando, picando e cortando as barras de cacau de um marrom cálido. As raspas começam a soltar os aromas terrestres, antigos, impossíveis de fixar com palavras. Para cada um que faz esse feitio, os cheiros que aparecem revelam tudo que já foi vivido e, dizem, do que ainda vai chegar.
Água, especiarias, cacau. Madeira que mistura e faz tudo girar. Por fim, a pimenta caiena empresta seu calor firme. Estamos prontos para servir.
Abençoe-me, Ultima
Entre o mar da Califórnia e as pradarias do Texas, nos Estados Unidos, existem territórios de deserto, vales profundos, cânions e rios.
Dois estados, o Arizona, e o Novo México, são terras profundamente influenciadas pelas tensões entre nativos norte-americanos, mexicanos com os quais fazem fronteira e colonizadores espanhóis.
Não sei se vocês reparam nessas coisas, mas quando vejo escritos em brasões e bandeiras, conhecidos como motto, palavra que evoca movimento e motivação, me sinto adquirindo um novo entendimento de um lugar, de um povo e de seus costumes. Em São Paulo, por exemplo, esta cidade aquariana, o motto é Non ducor, duco. Não sou conduzido, conduzo. Me diz se não conta muito sobre a megalópole brasileira?…
O motto do estado do Novo México, com sua bandeira amarela onde figura um círculo vermelho com quatro direções que reside a maior porcentagem de hispânicos daquele país. Onde se fala inglês, sim, mas também espanhol e navajo. Onde o motto é Crescit eundo: grows as it goes. Crescendo à medida em que vai.
É nesta também chamada Land of Enchantment que cresceu Rudolfo Anaya, filho de um vaqueiro com uma mãe de família de fazendeiros. A beleza das planícies desérticas do Novo México, referenciadas como llano nos escritos de Anaya, tiveram uma profunda influência em sua vida e obra.
Anaya se identifica e se dedicou a dar voz à cultura Chicana. De acordo com o dicionário Britannica, o termo é uma escolha, uma auto denominação daqueles descendentes de mexicanos que nasceram e cresceram nos Estados Unidos. A palavra tornou-se popular entre os mexicanos-americanos como um símbolo de orgulho durante o Movimento Chicano da década de 1960.
A cultura chicano, a mistura do inglês com o espanhol, o momento sociopolítico são alguns dos pontos de tensão que o impediram de publicar sua obra prima por uma grande editora. Rudolfo, que estudou literatura na universidade do Novo México, passou seis anos escrevendo esta história, e mais alguns buscando meios para publicá-la.
Mas, para nossa sorte, em 1972, a casa independente Quinto Sol topou lançar Bless me, Ultima, romance de realismo fantástico que traz amalgamados mitologias dos cuentos daquela terra. A aposta rendeu bons frutos; ao completar 50 anos em 2022, o livro vendeu milhões de cópias, foi traduzido, ganhou prêmios, adaptações em filme , peça de teatro e até em ópera.
Mas talvez o maior reconhecimento do poder desta narrativa resida no fato de que, em 1981, o Bloomfield School Board no Condado de San Juan, Novo México, queimou cópias do livro. Tudo que querem ver queimar em fogueiras vale a pena ser inspecionado mais de perto.
Iniciações e entendimentos
Se fiz essa cerimônia, é para situá-los com atenção e presença neste Cine Conchas. É quase tão necessário como dizer “Era uma vez” ao redor do fogo, essa frase que nos situa e acende, que gira a chave na porta de uma história.
Na telona, acompanhamos a corrida de Antonio, um menino curioso que, no verão dos seus sete anos, acompanha a chegada de Ultima, uma senhora vestida de preto, que vem morar na propriedade da família Márez.
As irmãs mais velhas de Toño, assim como muita gente do vilarejo, temem aquela mulher; questionam a mãe se ela é mesmo uma bruja. A mãe, nem confirma nem nega, diz apenas que devem chamá-la de La Grande e que estão honrados em recebê-la ali e que ela é, na verdade, uma curandera.
Esta palavra nunca é usada, mas esta anciã é o que se pode chamar de xamã, guardiã de medicinas tradicionais, respeitosa dos ciclos da natureza e dos frutos da terra. Brujas, animais de poder, maldições, plantações de chile, casa da luz vermelha, brigas de salão,matulas de tortillas. Esse filme entrega tudo isso e muitos outros elementos simbólicos belíssimos.
A conexão profunda e pura entre Ultima e Antonio é o fio condutor desta história. Ele foi o último filho de Maria Luna, que Ultima ajudou a trazer para este mundo, e cresce no período da Segunda Guerra Mundial, com seus irmãos mais velhos distantes, servindo no exército.
Acompanhamos este menino expressivo e curioso seguir Ultima em caminhadas, em excursões pelo rio que, ela ensina, sussura uma canção de verão. Tony, que estuda na escola dominical e recebe a palo seco os dogmas da igreja católica, não consegue se conformar com as várias perguntas que surgem diante dos acontecimentos ao seu redor. Porque existe mal no mundo?
Da sua mãe, recebe instruções de rezar, em preparação para a sagrada Comunhão, que promete o tornar Uno com Deus.
De Ultima, sábia como a coruja que a protege, que Antonio recebe pequenos e grandes ensinamentos, modos de cuidar dos outros, formas de comungar com as árvores, o vento, o rio. Uma verdadeira iniciação espiritual, se me permitem dizer.
Mas é do pai, para quem dirige este e outros questionamentos afiados, que nosso pequeno Antonio recebe uma visão generosa : “A maioria das coisas que chamamos de mal não o são de verdade. É que não entendemos o que são, e por isso os chamamos de mal".
Mas este pai, Gabriel Márez, deixa claro: o entendimento não vem fácil. É algo que cultivamos ao logo de uma vida inteira. Que, assim como no lema da terra que tanto inspirou Anaya, cresce a medida em que avançamos.
Senti que é uma bela história e uma inspiração para seguirmos tateando, ano adentro e vida afora, pelos pequenos e grandes entendimentos que só aparecem a medida em que nos colocamos à disposição desta jornada. Assista.