—- Você acha que a vida é só cozinhar, rezar e dançar forró?
Minha mãe faz uns dias me confrontou com esta frase.Como se fossem formas ruins de estar nesse mundo. Eu acrescentaria “escrever”, embora a escrita, neste ano, tenha ficado mais no campo do trabalho do que da livre expressão publicável.
O caderno segue cheio de notas, a cabeça fervilha de ideias, enxergo narrativas em tudo. Mas compareço pouco neste canto que arrumei para mim, esse restaurante imaginário onde eu posso servir tudo. Inclusive silêncio e ausência. A vida é bem temperada com ambos.
Porque conheço minha mãe e sei do diálogo que está no avesso destas palavras iniciais, sei o que ela quer dizer. Completei 35 anos. Sou solteira. Não tenho filhos. Sai do meu último emprego fixo em outubro. Trabalho muito, trabalho bem, mas, devo admitir, carreira e destaque profissionais não tem o foco que já tiveram. Talvez porque me sinto numa prolongada transição. Ou porque, como tantos pares da minha geração, já amarguei o esgotamento, o pânico, a ansiedade e a depressão.
Me cuidar, cuidar da minha casa, da minha gata, do meu corpo e das relações ocupa meus dias. E cozinhar é cuidado. Foi, mais uma vez, uma honra, um privilégio vivido ao longo dos meses. Me servir pela manhã com variações bonitas e alegres de café da manhã quando lá fora a vida era seca e cheia de queimadas. Assar bolos para quem precisa deles ( bolo com café ou chá pode sim ser da maior necessidade). Concatenar os melhores ingredientes para um salpicão perfeito em agosto porque era aniversário da pequena Isabel. Misturar ervas para um chá capaz de adormecer o corpo cansado que abrigava o coração partido de uma amiga querida. Cortar quilos e mais quilos de legumes e cozinhar centenas de marmitas, distribui-las para quem tem fome e não tem casa. Eu sempre quis cozinhar para as pessoas. Nutri-las me nutre e dá sentido a uma existência humana. Por muito tempo acreditei que precisava de grandes estruturas, de diploma de gastronomia, de trabalhar em restaurante, disso e daquilo. A realidade, como sempre, é bem mais simples. Este ano, um grande iogui, na primeira refeição que lhe preparei, depois de fazer uma oração e uma deferência, se demorou no prato a sua frente. E, do outro lado da mesa, com a suavidade que se imprime na alma daqueles que entram com frequência em estados meditativos, compreendeu: isso é muito pessoal para você. Uma verdade pura, decantada e que, no entanto, ninguém antes conseguiu enxergar em mim. Cozinho porque apenas ao animal humano foi concebida o tipo de linguagem capaz de se traduzir em um pão bem assado. Cozinhar é humano. Uma ação no mundo. Um amor pra vida inteira, já que é preciso comer.
E então, vem segunda parte da fala de minha mãe. Rezar. Ela que me ensinou. Santo anjo do senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou a piedade divina, sempre me reze me guarde me ilumina, amém.
Um rezo pode ser tanta coisa. Mesmo. Católicos dão voltas ao redor de um terço; budistas, hinduístas percorrem as 108 de um japamala. Muitas vezes, as voltas que dou são com a colher de pau em volta da panela fumegante de sopa. Que todos os seres possam se nutrir com amor. Que essa dor esteja de passagem. Que este alimento esquente e conforte, ao menos por hoje.
Durante a maioria dos meses deste ano, bati ponto - literalmente- em um dos ambientes mais energeticamente carrregados que já conheci. Fica na Esplanada dos Ministérios e desde criança, em passeios escolares, era um espaço que me causava mal estar. Mas tenho como a maioria das pessoas dentro deste sistema econômico compromissos financeiros, então eu ia cedo, percorrendo o Eixo Monumental, as vezes chorando, as vezes sorrindo, mas sempre rezando, ouvindo orações musicadas, cantando junto e à plenos pulmões : Senhor, fazei-me um instrumento de vossa paz. Onde houver ódio que eu leve o amor, onde houver ofensa que eu leve o perdão, onde houver discórdia que eu leve a união. Onde houver dúvida que eu leve a fé.
Eu ainda duvido, e muito, não pretendo enganar e muito menos converter ninguém. Mas, pra mim, rezar é melhor que não rezar. E por isso peço as bençãos e as permissões para entrar nas águas, de lago, de rio e de mar. Quando o vento sopra forte na copa das árvores, peço um afago. Abraço árvores como quem beija as mãos de um sacerdote; escuto o que elas tem a dizer sobre crescer e continuar, apesar de tudo.
Acendo velas, estudo as deusas, de tempos em tempos defumo os cômodos dentro e fora de mim. Converso com os mortos, dou permissão para que me orientem e antecipem pequenos relances logo ali na frente. Me coloco à disposição. Consulto esse grande livro de histórias que é a Bíblia. A Gita. O evangelho segundo o espiritismo. Os hinários e os pontos de preto velho. Eu rezo em silêncio quando sento na mesa com minha família. Mãe Maria, proteja e abençoe minha irmã e minha sobrinha, que a senhora mãe santíssima lhe conceda saúde e uma boa hora. Pai Nosso, proteja o meu pai, fale com ele em sonho, faça o seu mover santo e lhe ilumine o coração para que ele possa se amar e cuidar da própria saúde. Yabas, protejam sempre nossa caçula, que seu orí seja forte, que sua vida siga próspera, que assim seja. Aine, deusa e senhora, conceda à minha mãe todo amor para recomeçar, que assim seja.
Kuan-Yin, cuida de mim; me ajude a cultivar o perdão e a misericórdia. Alivia minhas angústias e interceda pelo meu karma nesta Terra.
Este ano, encontrei almas amigas com as quais me sinto muito viva e forte, onde posso exercer uma espiritualidade que não sabia que estava disponível. Esse encontro me trouxe uma gratidão específica: que alegria estar viva ao mesmo tempo, falar a mesma língua, poder se reconhecer neste mundo.
Rezo, portanto, em modalidades não ortodoxas. E dançar pode ser isso; uma meditação muito ativa, uma intermediação entre o sagrado e o profano, essas duas categorias indissociáveis na história e cultura brasileiras. Vejo passar a legião de ciganos e ciganas em cada flor no cabelo das morenas forrozeiras; sinto o inegável pulsar da África nas batidas da zabumba. E me coloco à disposição do lúdico ao propor e aceitar, aceitar e propor cada passo, cada giro, cada abraço, enlace e desenlace. Assim como cozinhar, dançar é da ordem muito humana; dançamos desde o ventre, um bebê responde à música com ritmo e movimento, sabemos empiricamente, mas crescemos e cerceamos essa liberdade em nós, e é preciso resgatá-la.
Este ano fiz menos aulas de dança, mas comecei timidamente à aprender os caminhos da condução. No entanto, algumas práticas de sexta-feira e bailes de domingo salvaram semanas e meses de difusas frustrações. Ouvi ao vivo o magnífico Benício Guimarães, a xará Mariana Aydar, os bonitos do Forró Cobogó, duas vezes o Jeneci.
E por esse amor ao forró, por essa promessa de alegria pura, me coloquei no carro com outros três dançarinos e percorremos os mais de dois mil quilômetros até a meca forrozeira, a Vila de Itaúnas, no Espírito Santo. Por aqui, todo é sobre dança. Na padaria, desde as sete da matina tem pares agarrados, xaxando. Um cortejo percorre a ponte sob o rio que dá nome à cidade e que deságua no mar. Uma loja de jóias banhadas em prata vende exclusivamente pingentes de sanfona, triângulo, notas musicais. Marcas de tênis de dança ocupam casas de temporada para fornecer os pisantes capazes de aguentar os sete dias de maratona dançante. Pelas ruas, placas com os dizeres de canções populares e homenagens aos gigantes; Gonzaga, Dominguinhos, Marinês.
Achei que precisaria ter mais preparo, mais conhecimento técnico dos passos, um planejamento prévio para vir. Mas foi só vir. Como cozinhar é cozinhar, rezar é agir. Viver é viver. Então, eu não sei quais são suas ações mais repetidas - comer? Amar? Rezar? Mas eu espero que elas se tornem cotidianas no próximo ano que nos espreita. Veja, é uma bobagem, nós contamos o tempo, mas o tempo não se conta, ele só passa. Se até o tempo pode só agir, porque eu também não posso? Podemos. Que no ano que vem você , que pacientemente me lê e que também sustenta minhas ausências na escrita possa encontrar ações, pessoas e situações que lhe tragam acolhimento, leveza e senso de pertencimento neste mundo. E, veja só, isto não é pouca coisa.
"Rezar é agir": vou passar o ano pensando nessa frase. Obrigada por ela e pela onda imensa de afeto que são os seus textos! Espero que 2025 te seja gentil e venha carregado de tudo o que te faz bem.
PS: Ah, que alegria saber que Itaunas segue lá, desse jeitinho aí que você descreveu. Me dei conta que faz 25 anos já do meu reveillon forrozeiro, ô lindeza!
A sensibilidade de pessoas que cozinham para o outro com todo seu coração sempre me surpreende. Cozinhar é amar. Amar é rezar. Que a sua espiritualidade viva nas atividades que te movem verdadeiramente.