Os dias têm sido tão bonitos nesta última fase do inverno. Nenhum sinal de chuva no céu. Esfria quando anoitece, mas é o preço que se paga pelo degradê de laranja a púrpura, chamuscado de rosé e azul.
É a época perfeita para acender pequenas lareiras, estender um enorme lençol que faz as vezes de tela e projetar filmes para nossos comensais. Por isso, hoje teremos uma sessão de Cine Conchas, com um filme recém-saído do forno, comida boa, festão de pequenas luzes, almofadas, tapetes, mantinhas, vinho.
Temos pipoca feita na hora, que é perfeitamente boa e simples mas que pode ser com manteiga de tomilho.Também oferecemos a versão doce, cor-de-rosa, como se encontram nos parques nos dias felizes e na memória das crianças sortudas.
E, porque tem feito meus dias na capital portenha, servimos almendras garrapiñadas. São as amêndoas doces, caramelizadas, com seu cheiro guiando os visitantes tal qual personagens dos desenhos animados antigos.
Não paramos nisso, afinal é uma sessão de cinema, sim, mas de um restaurante.
Potinhos com guacamole, pico de galo e creme azedo com nachos são outra opção de petisco, assim como uma batata frita safada, cortada na hora, frita duas vezes, salgadinha, inspiradas livremente naquelas servidas no Silvio's, o restaurante mais despretensioso de Brasília.
Doces e não menos viciantes, os pacotes com biscoitos mentirinhas são uma garantia de repeteco durante toda a sessão.
Fuet em fatias finíssimas, tão finas que se pode ver a Lua através delas, como gostaria Merlí, o professor catalão que tanto nos ensina sobre a vida e a filosofia de todas as coisas, até do salaminho.
Na ala de tira gostos nostálgicos, temos queijo macio em quadrados com orégano por cima, azeitonas pretas, amendoim verde. Para equilibrar as coisas, berinjela frita, tomatinhos amarelos e vermelhos cheios de azeite, pimenta preta e folhas de manjericão. Coxinhas, risole de milho fresco e um mini quibe temperado com pimenta de cheiro fecham o cortejo que antecede o filme.
Bom, mas e para beber? Além de água que é cortesia da casa e de bom tom, temos limonada de limão vermelho. Refresco de tamarindo. Suco de caju e chá mate caseiro batido com gengibre.
Espumante ( já tomou uma tacinha junto com pipoca? Pois deveria.), vinho Tempranillo rosé e um Sangiovese divertido, para se beber bastante, glut glut.
E, para acalentar, chocolate quente cremoso com pedacinhos de marshmallow para derreter ou whiskey irlandês para renovar.
Existem muitos filmes gastronômicos que calharia recomendar. Alguns estão até em edições anteriores da newsletter, vale a pena ler de novo. Mas para essa sessão, vamos passar Como seria se?… que estreou recentemente no catálago da unipresente Netflix.
Acompanhamos a vida de Natalie que, prestes a se formar e com um plano para os próximos cincos anos, se depara com um pequeno grande imprevisto no caminho.
Com direção da queniana Wanuri Kahiu, Como seria se?… é um daqueles filmes que me atraí pelo simples fato de traçar duas realidades paralelas e desdobrar as possibilidades. Sem grandes explicações. Sem viagem no tempo. Apenas partindo da premissa de “como teria sido se".
Eu, que gasto incontáveis horas da vida imaginando como teria sido se eu tivesse escolhido aquele outro estágio, comprado a outra passagem, beijado aquele outro moço ou enviado aquele outro e-mail certamente gostaria de poder dividir o espelho da vida ao meio para ver as consequências das duas opções, qualquer que fossem elas. No filme, de certa forma, essa curiosidade pelo que teria sido é saciada, ainda que da maneira que os petiscos saciam a fome; superficialmente.
Em uma versão sua, Natalie engravida sem querer de um amigo. Ao decidir ter a criança, ela precisa voltar para a casa dos pais, abrir mão de um futuro imaginado, amargar um puerpério solitário enquanto vê fotos de amigos vivendo outras situações nas redes sociais.
Um dos diálogos mais expressivos é dela com a mãe, que fala sobre o luto velado que as mulheres que engravidam sentem uma vez que uma parte grande de quem são está indo embora para sempre. “Porque o fato é que não importa o quanto você queira ser mãe, você nunca mais deixará de ser uma". A tal tatuagem na testa que falam? É isso.
Em outra versão, o teste de gravidez dá negativo, e ela parte com a melhor amiga Cara para Los Angeles, a terra dos sonhos, e consegue um emprego como assistente em um estúdio de animação.
Claro que nessa versão as coisas também não seguem um caminho esperado. Natalie se vê servindo infindáveis cafés para a chefe, aguardando uma chance de mostrar seu talento e seu trabalho, apenas para sofrer com uma crítica sincera mas dura, com outras dúvidas, com desilusões amorosas.
Cada escolha, uma renúncia
Não que esse filme vá se tornar um clássico, ou mudar vidas, ou provocar grandes debates. Mas quando temos mulheres contando histórias de mulheres, a conversa é outra. Além de Wanuri na direção, o filme tem o roteiro da debutante e produção executiva de Alyssa Rodrigues. Por tantas mãos e visões, a trajetória de Natalie toca em temas delicados e muito intrincados na condição feminina. Com o bônus de ter um olhar atualizado.
Talvez o maior “e se” de uma mulher, historicamente, seja a maternidade. Talvez nos dias atuais, seja a carreira. Uma coisa está intimamente ligada com a outra, e uma mulher que pode fazer opções tem uma camada de privilégios inegáveis.
Não à toa, Virginia Woolf nem piscou ao decretar “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção. “
Sabe qual é a maior constante na vida de Natalie? Eu poderia dizer que é a família ( que se mostra presente, não sem uma dose de embates e ajustes) ou a amiga fiel escudeira, ou o pai da filha, mas não é apenas.
Sua maior constante, mesmo nos seus piores momentos, é a sua capacidade, desejo e pulsão de desenhar. Mesmo sem grana e sem um teto todo seu, sua arte, aquilo que ela faria - e faz - a define melhor. Não à toa, quando a vizinha de cima reclama do barulho de Natalie e Cara, que responde que ali não é uma biblioteca, o livro arremessado é O caminho do artista, de Julie Cameron.
Com ou sem filha, no apartamento dividido em Los Angeles ou no quarto na casa dos pais, ela desenha, ela melhora sua técnica, ela encontra sua voz no desenho.
E é isso, e não algum homem ou emprego ou promessa que a coloca de volta num caminho todo seu.
Gostei, quero ver o filme !