Caros comensais,
Envio esta edição em caráter extraordinário, motivada por acontecimentos fantásticos. Não sei como dizer, mas o Conchas, esse restaurante fictício, foi infestado por…formigas.
Quando iniciei esta correspondência, em abril, comecei dizendo que fazia tempo que a realidade dava dribles na ficção. Pois bem, desta vez, quem tomou o passe fui eu.
Passei as últimas semanas imersa na leitura do livro físico Atlas de Nuvens, do David Mitchell. Esta obra prima, um belo catatau de mais de 500 páginas,pouco prático mas excelente, merece toda a atenção e elogio, mas não agora. Pois bem, nesse meio tempo, meu leitor Kindle ficou parado, em cima de uma pilha de livros.
Eis que terminei a odisseia das vidas que se cruzam como nuvens e resolvi retornar aos livros virtuais. Encontrei a tela de aviso de falta de bateria, normal, pelo período sem manuseio. Ao tentar carregar, percebo que a luz não acende, pisca, volta, pisca, volta. Faço outras coisas, passa um tempo, volto ali.
Vejo que carregou um pouco, o mínimo para mudar para a tela de início, mas não consigo apertar nada, o toque não funciona. Seria mau contato? Faço o que qualquer brasileira da minha idade, que cresceu consertando fita cassete e gameboy faria: soprei pelo buraquinho, a única abertura da caixa preta.
Sem saber, libertei a fúria de mil minúsculas criaturas. Formigas, formiguinhas vermelhas, começaram sua diáspora para fora do aparelho, numa cena apavorante. Dali a pouco, os pontinhos mudam de cor e de escala, e bichinhas ainda menores, albinas, se atropelam para fora. Filhotes. Minha biblioteca virtual, tinha virado um ninho. Gravo a cena da janela, não sei porque, só me ocorre colocar o aparelho perto do Sol.
Se eu tivesse saindo de uma caverna, gostaria de ver o Sol, vocês não? Lembro de Lygia Fagundes Telles, de Cortázar, do Gabo, do Borges. O que será que pensariam nesse ponto?
Deixo o aparato ali, impotente. Vou ao escritório, trabalhar, vencer a lista de tarefas do dia. Não consigo, a cabeça virou formigueiro, e, culpada, penso que negligenciei os livros virtuais em prol desta coisa datada, ruim para o planeta, livro de papel, quem usa?
Será que eram formigas que moravam na árvore que foi derrubada para a confecção do Atlas de Nuvens? Desabriguei uma comunidade, e, agora, devo sofrer as consequências, pagar com tecnologia como fizeram os primeiros colonizadores.
Ou será que foram todos estes anos assando bolo formigueiro? Por acaso elas não sabem que são granulados, raspas de chocolate, puro açúcar? Mesmo assim, talvez não seja o nome mais sensível à causa. Doravante, penso, não serviremos mais tal quitute no Conchas.
Talvez seja um crime de vingança. Sim, vingança. Pela formiga saúva bunduda que comi em cima de um sorvete num menu chique, contemporâneo, em um restaurante bacanudo de São Paulo, em 2017.
Teria eu devorado um membro da realeza formica? Ou, pior, um mártir da revolução dos bichos? A mãe de todas elas?
Pode ser um crime de motivação religiosa, também, por todas as piadinhas inadvertidas contra o Smilinguido, a formiga crente. Ou, ainda, a ação de extremistas culturais, pelo franco desprezo que eu tive pelo filme Formiguinhaz no final dos anos 1990. Não posso me desculpar. Vida de inseto é claramente superior.
Minhas elucubrações são interrompidas por uma notificação que chega no celular, me dando parabéns pela compra de um…livro virtual.
Abro o e-mail. Não fiz a compra, não poderia, nem consigo acessar a tela do Kindle. Vou até a janela, e um arrepio percorre meu corpo. Na tela, Robôs e o Império", de Isaac Asimov, havia sido comprado pelas formigas.
Ou seriam elas robôs enviados de um futuro próximo e distópico?
Elas sabem alguma coisa que eu não sei? (É sobre outubro? Socorro!)
Volto ao escritório. Abro o e-mail e contesto a compra direto na Amazon. Na tela de reembolso, preciso dar o motivo pelo qual desejo cancelar aquela compra. "Comprei errado" não dá conta, mas é o que escolho.
Não consigo desligar o kindle. Nesse ponto, já entendi que virei um personagem. Resta saber quem é o autor. Torço para que não seja alguém que me conheça, como é o caso da Fabiane Guimarães.
Mando uma mensagem para ela, contando tudo, incrédula, e lembrando que se fosse um conto escrito por ela, meu futuro não seria muito promissor. Caso fosse ela escrevendo, que tivesse piedade, eu peço.
Depois, resolvo pesquisar os termos "formiga no kindle" na rede mundial de computadores. Não é possível que eu fosse a primeira, e não era. Leio algumas sugestões. Alguém fala de colocar cravos na entrada do aparelho, o que faria com que as bichinhas fugissem em debandada.
Vou até a cozinha, alcanço os cravos, faço um chá de camomila e hortelã. O chá é pra mim. Levo os cravos mas não tenho coragem. Lembro que muita gente não gosta do cravo ali, enfeitando o beijinho de coco, talvez fosse o caso das bichinhas.Não quero irritar as formigas futuristas, e descarto qualquer forma de veneno.
Nova notificação no celular. Mais um livro foi comprado. Entre resignação, curiosidade e receio, abro o e-mail para ver qual título escolheram desta vez. O anel de Giges: Uma fantasia ética, de Eduardo Giannetti.
Se, para o bicho da goiaba, o mundo inteiro é uma goiaba, para a formiga do kindle o mundo é de possibilidades ficcionais.
Mas agora só me faltava essa. Não basta o algoritmo que escolhe tudo para mim, agora a curadoria virá pelos bichos?
Chega. Dou várias batidas no aparelho, mais formigas despencam, a tela finalmente fica em branco. E agora, o quê?
Sigo para a próxima sugestão dos internautas, que é submergir o aparelho em arroz, que deve tirar a umidade e chamar as formigas. Eu tento, e francamente fica parecendo um altar meio oriental para o Deus dos aparelhos obsoletos.
O branco do arroz me faz pensar em uma bandeira da paz, uma trégua, então deixo ele ali, e vou encontrar Fabiane para o almoço.
Nesse meio tempo, Fabiane, que é uma leonina linguaruda, faz um tweet resumindo meu calvário.
Muita gente responde, manda sugestões, mas é a Fabi que diz, categórica e francamente malévola enquanto atraca um galeto: congela elas.
Câmara fria, na secura do Cerrado. Não queria que chegasse a tanto, sou contra requintes de crueldade. Mas entendo que estamos no limite. São elas ou eu.
De noite, coloco o aparelho em um saco plástico e dentro do congelador. Espio ao redor, sozinha, na cozinha, uma assassina. De centenas? De milhares? Melhor não pensar muito nisso.
Vou para o quarto. O que me resta a fazer é uma mala. Sim, uma mala com roupas, casacos, meias térmicas.
Escolho alguns livros físicos. Não é Sopa, da Nina Horta. Banquetes Intermináveis, da Ruth Reichl. Como cozinhar um lobo, da MFK Fisher. Passo a mão pelo Seminário dos Ratos, da Lygia. Melhor não.
Mas eu sei quem está faltando. Desde o começo, eu soube.
Encontro na estante o exemplar antigo de Cem anos de Solidão, aquele que meu pai deu de presente para minha mãe antes de eu nascer. É o que falta.
Envio esta missiva direto do saguão do Aeroporto de Brasília. Um avião me levará cada vez mais ao Sul. Dizem que, este fim de semana, tem chance de nevar na Serra. Veremos.
Não devo abrir o Conchas no domingo, o que há de fazer. Passarei um frio danado, que talvez não seja o mesmo do congelador, mas ainda assim. Até agora, não foram comprados novos livros. Desativei a compra com um clique. Talvez eu leia, em versões físicas, os títulos escolhidos pelos insetos. Espero que, assim, estejamos quites, eu e as formigas.
Me preocupa o que va a passar quando descongelem a geladera...que compras faram estás creaturinhas tāo inteligentes? Tal vez Viagem à lua de Verne e querían chamar a a
tençao para outras realidades...
Adoro uma ficção que invade a realidade... rs