É dia dos namorados, e eu sei, eu sei, não estamos aqui para falar de rodízio de sushi, festival de camarão em motel, combo de fondue de carne, queijo e chocolate.
Também não estou aqui para opinar sobre jantares nos quais o menu começa com dadinho de tapioca e geléia de pimenta, aqueles olhares abobados, as velas acesas em cada mesa. O moço com violão, saxofone ou piano elétrico dando o seu melhor em um cover do Bee Gees, how deep is your love. How. Deep. Is. Your. Love.
E o espetáculo de erros continua com a trilha sonora duvidosa, com os demais personagens entrando e saindo de foco. O garçom apressando o prato principal, duas opções, vá lá, tilápia com molho de camarão mirrado ou filé com molho madeira e risoto pálido, a namorada ali nervosa, tendo que escolher rápido, a calcinha vermelha nova, primeiro uso, apertando o juízo, paralisando as vontades.
O namorado pensando na sobremesa, isso mesmo, mas ela ainda não chega porque o menu termina em petit gâteau que assou demais e virou brownie porque o salão está cheio e Donivaldo, o segundo cozinheiro, faltou para passar a noite com a morena num hotel fazenda nos arredores de São Sebastião. O dono do bistrô, arriscando perder ele mesmo as boas graças com a sua senhora, aperta o avental, bota uma rede em volta dos cabelos ralos e se rebola para atender a demanda exasperada de novos casais que não param de chegar.
O bolinho, quase carbonizado, é enfim servido com sorvete já derretido, no genérico sabor de creme, completando a refeição que foi servida com um vinho Reservado vendido com preço de Reserva e em temperatura ambiente de deserto, a coisa toda capaz de causar em tempo recorde uma indigestão danada bem na fatídica hora.
Para evitar tragicomédias como essa, aqui no Conchas, não abrimos no dia dos namorados. Não que sejamos contra namoros, muito pelo contrário.Inclusive, oferecemos outras ocasiões, como o grande banquete Afrodite, realizado todo dia 8 de janeiro, desavergonhadamente inspirado em receitas do livro Afrodite - Contos, Receitas e Outros Afrodisíacos de Isabel Allende.
Ganhei uma cópia deste livro, veja só, de um ex namorado, que não era bobo nem nada, e mesclava as investidas literárias com a preparação de quitutes que aprendeu em viagens, com amigos e com a avó.
Da mesma forma, Allende entrelaça histórias fantásticas de conquistas amorosas através da boa mesa, casos que viveu ou ouviu, jantares surpreendentemente sedutores, e, até, receitas de caldos fortes, robustos, para servir em orgias.
É, com razão, um ponto alto do ano para esse humilde restaurante, com uma infinita lista de espera encabeçada pelos leitores vorazes, entusiastas das artes eróticas e famintos de amor de todos os cantos.
“Arrependo-me das dietas, dos pratos deliciosos rejeitados por vaidade, tanto como lamento as oportunidades de fazer amor que deixei passar para me dedicar a tarefas pendentes ou por virtude puritana.”
No Conchas, também aceitamos, de bom grado, encomendas para retirar e comer mais à vontade em casa ou reservas em outras noites do ano para casais que desejam celebrar seu amor com boa comida e ótimos vinhos. E incentivamos, de toda forma, quem opta por cozinhar em casa, a quatro mãos, sem o compromisso de se chegar vestido até o final da ceia.
“Tudo o que se cozinha para um amante é sensual, mas mais sensual ainda é quando ambos participam da preparação e aproveitam para ir tirando as roupas com malícia, enquanto descascam cebolas e desfolham alcachofras”.
É preciso ritualizar a vida, dar sentido aos dias. Celebrar os amores é uma forma de rebelião em uma época como a nossa. Mas me incomoda a coisa forçada, o menu batido, o endividamento em prol de uma data, a obrigatoriedade da demonstração de afeto com dia marcado.
Acredito que cada casal, cada pareja, pode muito bem ser o encontro de corpos celestes, e cada vez que nos dispomos a dividir a vida com alguém é uma confluência de culturas que experimentamos.
Em cada relação, temos a oportunidade extraordinária de inaugurar uma nova linguagem, criar um novo território, unido, um país cheio de recôncavos geográficos a serem explorados.
Seja no mapeamento das sardas nas costas do outro, na exploração da paisagem interna da pessoa amada. Ou na descoberta da mata virgem dos desejos ainda não realizados.No mergulho no rio que corre inadvertidamente entre águas boas e más águas no íntimo de cada um. Tudo vale a exploração, e estar apaixonado é ter um apetite novo, redescoberto, disposto, pulsante.
E, como um novo país de dois fundadores, um relacionamento conta com uma linguagem própria, costumes, feriados nacionais comemorados exclusivamente por dois habitantes. Porque haveria de ser diferente com a culinária nacional dos enamorados?
Desde o primeiro dia, se você reparar, vai ver a formação da culinária amorosa. Ela está ali, no jeito que o outro gosta do café, servido na xícara preferida.Também está naquela combinação suspeitíssima, algo entre a gemada e o leite queimado com canela que vocês aprenderam a apreciar nas manhãs insuspeitas de inverno.
O docinho de fios de ovos, comprado e carregado no ônibus com as mãos em concha, escudos de pássaro novo, oferenda para um novo enlace, que se correr tudo bem, dali um tempo, será servido junto com os bem casados.
O risoto daquele restaurante que até já fechou mas que os dois sempre lembram vividamente porque foi ali, naquele encontro, que souberam o que antes apenas suspeitavam.
Os drinques preparados com a Tequila que veio na mala da viagem para o México que os deixaram borrachos, talvez o suficiente para comprar, por impulso, novas passagens de volta à Tulum.
Ou os fuets contrabandeados dentro do cano de uma bota longa da Espanha, que serão finamente fatiados, postos contra a Lua para que se possa enxergar do outro lado, fazendo par ao vermut que te deixa alegre e bamba.
Isso sem contar os tantos vinhos, da safra do ano em que vocês se conheceram, esperando pacientes na adega para uma consagração do amor, uma comemoração em plena segunda-feira, uma desculpa para dançar na sala, à sós, à dois.
Nesse país, que vocês criaram, talvez uma das comidas típicas seja o primeiro macarrão que ele fez, no começo do namoro, e que segue se repetindo, evoluindo, aceitando a adição - ou a falta - de novos ingredientes.
Não é sobre isso, afinal? Todo relacionamento é, também, um livro de receitas escancarado, aberto nas páginas mais aleatórias, com instruções legíveis apenas aos envolvidos. Impossíveis de se repetir, por mais que se queira ou se tente.
Tudo isso vale se o seu for um bom par. Ou enquanto for bom, pelo menos.
É MFK Fisher que, da maneira brilhante e astuta que lhe é característica, pontua em Um alfabeto para gourmets, logo na primeira letra, A, de Antes Só (ou Alone no original em inglês) sua pouca disposição para companhias não satisfatórias na hora das refeições.
"Antes só do que mal acompanhada. É o que acho, se for o caso de escolher entre estar com a maioria das pessoas que conheço e estar comigo apenas.
Não me orgulho dessa atitude misantrópica, mas a mantenho com firmeza, baseada na convicção cada vez mais arraigada de que não se pode tratar levianamente o ato íntimo de compartilhar o alimento com outro ser humano.
Existem poucas pessoas vivas com as quais aceito rezar, dormir, dançar, cantar ou dividir o pão e o vinho."
Com quem, mais do que o quê, talvez seja a escolha mais importante diante da mesa posta da vida.
Cate por aí
Sugestões de histórias de paixão e amor embaladas por muita comida e boa bebida, para assistir muito bem só ou acompanhada:
Clássico absoluto, a adaptação cinematográfica do livro Como água para Chocolate, de Laura Esquivel, é imperdível. Na história, acompanhamos Tita, a caçula de três irmãs, colocando todo seu amor proibido pelo cunhado Pedro em preparações típicas do México. Disponível na Netflix.
Dois aficionados pela gastronomia dão match em um aplicativo e marcam um café, que vira um jantar, um almoço, e tantas outras refeições de dar água na boca. Essa é a premissa de Foodie Love. Filmada na Espanha, França, Itália e Japão, é uma série que dá fome e vontade de dividir os lanches (e as cobertas) em cada episódio. Disponível na HBO.
Ambientada na Espanha do século 18, A cozinheira de Castamar, uma adaptação do livro homônimo de Fernando J. Muñez, acompanha a saga de Clara Belmonte, uma jovem que perdeu o pai, acusado de traição à coroa, e está fugindo de seu passado.Culta e amante dos livros, ela se vê desamparada e acaba indo trabalhar como servente na mansão do Duque de Castamar, Don Diego, um viúvo que se isolou após a morte da esposa grávida.Nossa mocinha se destaca na cozinha do castelo, e acaba atraindo a atenção de Diego, que não consegue resistir aos deliciosos pratos que ela prepara. Sim, é bem um novelão de época, mas é lindamente filmado e tem curiosidades históricas muito legais sobre comidas da época. Disponível na Netflix .