2074
Se fomos capazes de sobreviver à uma distopia, seremos capazes de imaginar uma utopia realizável
Olá! Sejam bem vindos ao Conchas, esse restaurante imaginário no final da galáxia. Essa semana não abriremos no domingo, um dos mais importantes das últimas décadas. Espero encontrá-los do outro lado desse complexo processo, confiante num modelo sustentável de democracia.
Até lá, e talvez por causa disso, tenho feito o exercício mental de conceber uma utopia. Ou várias. Em parte porquê viver dentro de uma distopia que virou o mundo e particularmente o Brasil nos últimos 4 anos é, no mínimo, cansativo e triste.
Em parte porquê muito se fala, se escreve e se produz (livros, filmes, séries) sobre as diferentes maneiras do mundo acabar, e pouco se fala nas maneiras do mundo se curar. E se, no lugar da extinção, a humanidade pudesse contemplar uma regeneração?
Embora viver seja melhor que sonhar, é da maior importância abrir espaço para o sonho. Ainda que em tempos sombrios. Principalmente neles. Então a crônica de hoje se passa em 2074, com alguns sonhos, delírios e esperança, diretamente de Brasília.
Acordei cedinho. A velhice tem dessas coisas. Senti que talvez hoje fosse um dia em que a encontraria. Fazia tempo desde a última vez que nos vimos, mas senti forte esse reencontro.Nos últimos anos dessa década, as faculdades do sentir humano floresceram sem precedentes.
Nossas mentes, descobrimos, sempre foram aptas para sinergia, para a telepatia, para a conexão real. Quem diria que, para recuperarmos essas capacidades, era só eliminar tantas substâncias tóxicas do planeta, das águas, do solo, da comida, do ar?
Bom, muita gente, na verdade, alertou, escreveu, demonstrou, por mais de um século.Cientistas, ambientalistas, professoras, ativistas, cozinheiras, agricultoras, mães. Mas enfim ouvimos.
Continuo cozinhando e escrevendo, embora em outros ritmos. Abro o Conchas, esse belo espaço que extrapolou as palavras e ganhou solo e gente. O chamo de restaurante mais por preservar a origem da palavra, enfatizar que é um lugar onde as pessoas podem vir restaurar as energias.
Mas, como a maioria dos estabelecimentos desse tempo, o Conchas está mais para um viveiro de plantas, em sua maioria, comestíveis. Os cidadãos chegam, escolhem folhagens, leguminosas, sementes, proteínas vegetais e as mocinhas preparam o que de mais fresco e vivo você pode pensar.
As tatuagens, que são biomarcadores, informam como anda o condição geral da pessoa, e sucos e vitaminas, como a floração da lua ( beterraba, limão, hibisco, gengibre, chia e água de kefir) fazem sucesso.
Mas, claro, continuamos bebendo vinho, café e cerveja, que jeito. Os mais novos não entendem muito bem o consumo de álcool, mas nós, velhacos, ainda curtimos e muito tomar um pileque no fim do dia.
Contra todas as minhas expectativas pessoais, Conchas acabou se fixando na antiga capital do Brasil.Na quadra estranha, que chamava-se Babilônia e que, hoje, tem mais jardins suspensos do que me lembro na juventude.
Antiga capital porque, hoje, as lideranças são descentralizadas. Os recursos são alocados de acordo com as necessidades de cada região, e o que não é usado é redistribuído.
Brasília ( o nome foi mantido, embora tenha havido, se não me engano, um plebiscito para trocar o nome em 2061) vive sem o peso da concentração política, e é antes de tudo um portal de entrada para a reserva do Parque Mundial da Chapada dos Veadeiros.
Gente de todo canto passa por aqui, medita na praça dos Cristais. Os antigos ministérios foram convertidos em fazendas verticais, centros de convivência e bibliotecas vivas. O grande prédio em H representa, de fato, a humanidade.
Hoje, ninguém fica sem comer. A renda básica universal passou a ser uma realidade em 2052. Foi difícil, houve resistência e quase voltamos para a barbárie, assim como foi em 2022. Mas combinamos o jogo, achamos chão comum, e aqui estamos.
Mas quero falar de Aura, que sinto que vou encontrar, aqui, hoje. Sim, ela mudou seu nome de batismo, assim como sua companheira. A conheci quando ela era uma garota de doze anos de idade, fardada e fadada ao peso de um sobrenome que virou sinônimo de trevas.
De lá para cá, presenciei de longe a revolução, verdadeiro movimento do caos a iluminação. Quem diria que aquela garota franzina, emburrada, viria a se tornar a força e a cara de uma nova nação?
Aura gosta muito da surpresa de berinjela que servimos na primavera. E também sempre se delicia com um vinho de Jaboticaba que um velho amigo meu produz em pequenas quantidades.
Em 2042, Aura liderou uma frente política, liberou os arquivos familiares, denunciando crimes do pai, mãe, dos irmãos.
Não deve ter sido fácil. Penso no quanto ela deve ter se sentido só. Mas foi esse movimento que tornou possível a aproximação dos outros, Micha, Laura, Clara e os demais filhos e netos de lideranças antigas que erraram muito mas abriram esses caminhos.
Ela diz que ficou sabendo do Conchas e de mim por conta de um texto que viajou no tempo, mas que não pode me contar exatamente os detalhes, sob o risco de que eu não o escreva, nem o publique. Acho graça disso, mas, tendo hoje um pouco mais de intimidade com essa teia de energia e frequências que chamamos de tempo, eu aceito.
Tenho acompanhado os esforços dela no sentido de se tornar a representante cósmica dessa parte do globo, e também na operação nada simples de trazer imigrantes de zonas inviabilizadas do planeta.
Caminho de pé descalço, é bom sentir a Terra ressonante. Dispenso os comandos mentais para os mordomozinhos de metal, vou eu mesma descendo a escada que me leva a adega subterrânea.
Apanho duas garrafas de vinho de jaboticaba, e um de uva, antigo, da safra de 2023. Daquele verão vermelho eu me lembro muito bem. Eu poderia ficar aqui puxando o fio do passado, mas, ela está pra chegar, e quero preparar a surpresa de berinjela eu mesma, no melhor estilo humano.
Gostoso ser uma distopia tão vegetal. Ao mesmo tempo que, pensei bem e em 2074 já não estarei mais aqui, provavelmente. Que estejam os alimentos e as pessoas, a conviver com respeito e mais possibilidade de vida.
Viver é melhor que sonhar, mas é preciso sonhar coletivamente para as coisas evoluírem
Que bom que estamos falando sobre a importância dos sonhos e isso está na pauta do dia - significa muito sobre o tempo que vivemos e aí pode estar a cura
Linda essa news, adorei :)